Isto não é um filme PAN

Tem asas que nos levam para longe este olhar documental sobre dois irmãos em Nova Deli que salvam papagaios negros. All That Breathes é um dos favoritos aos Óscares na categoria dos documentários. Chega esta semana à HBO Max e tem assinatura de Shaunak Sen.

Entrar num mood de uma cidade. Os dias são os de hoje, o ambiente é o do apocalipse de amanhã. Neste documentário indiano a cidade de Nova Deli é uma proposta de personagem. Entre o caos e alguns pingos de humanidade. Ironicamente, o tema passa por um olhar sobre os papagaios negros que enchem o céu desta metrópole.

All That Breathes está nomeado ao Óscar de melhor filme documental e tem causado um rasto de amor desde que foi exibido no Festival Sundance em janeiro do ano passado. Sabiamente, desvia-se das armadilhas das "boas intenções" ou do olhar anónimo dos objetos do National Geographic. E é mesmo de amor que o filme é feito: o amor de um olhar atento sobre a cidade e os animais, mas também contaminado pelo amor que dois irmãos e um amigo colocam numa jornada de proteção aos papagaios negros que são fundamentais num ecossistema de Deli que se ameaça a si próprio perante níveis de poluição assustadores e por uma indiferença não menos assustadora.

Shaunak Sen segue a obra desses irmãos que ao longo da sua juventude tentaram resgatar e salvar todas as aves da cidade que ficam perdidas ou feridas. Num pequeno espaço que possuem tentam ter uma clínica que trata dos pássaros feridos. Vivem de doações e descontos e fazem das tripas coração para dar vida a estes seres negros de imensa beleza. Pássaros que fazem com que o lixo a céu aberto em Deli não cresça. Mas o tempo passa e a fadiga aumenta. Chega uma altura em que a família é prioridade, a família e uma chamada de uma universidade nos EUA.

Entre os factos de expor uma situação de guerra religiosa na Índia (vemos os ecos das violentas manifestações que prejudicam os muçulmanos migrantes) e os dados que mostram todo o flagelo climático da região, All That Breathes tem um carácter meditativo. Não é por acaso que a câmara pára muitas vezes no olhar dos pássaros. Um olhar próximo onde se sugere uma sapiência e um julgamento sobre a condição dos humanos. São close-ups que prefiguram um peso de fábula dura. Apesar de ser sempre inspirador, é um filme que recusa o pendor "queixinhas". Chega mesmo a dar esperança, sobretudo quando lá de cima vemos um céu onde a vida continua e há sempre força para voar. Nos olhos desses pássaros sobreviventes há então uma daquelas lições de vida tocantes sem ser piegas e os melhores momentos são precisamente aqueles em que o silêncio impera. Porque lá fora há o apocalipse: o fogo dos confrontos dos manifestantes, o cinzento do ar que não se respira e a imundice que afeta os outros animais. Pena é que o filme cultive uma busca por ambientes que se querem poéticos e que são apenas forçosamente inusitados - não era preciso, é apêndice, nomeadamente quando o tal silêncio dá antes lugar a uma partitura musical irritante e derivativa. Não se pode ter tudo...

Delicadamente triste, esta docuficção (os diálogos entre a família são necessariamente preparados) tem atos de amor nunca antes vistos de registo de um elo inquebrável entre Homem e animais. Uma comunidade dos ares, tão frágil como vincada.

dnot@dn.pt

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