Isto não é 007

Jessica Chastain lidera um elenco apostado em refazer James Bond em tom "feminino": não vem daí mal ao mundo, mas a imaginação cinematográfica está longe de ser brilhante.
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O que significa Agentes 355? Digamos que quando um filme nos faz encalhar na "mensagem" do seu título algo vai mal (no original: The 355). Até porque, lá para o meio da ação, vamos deparar com uma cena, dramaticamente dispensável, em que uma das personagens vem explicar que se trata de um epíteto lendário ligado à história da espionagem no feminino...

Eis a eventual chave da questão: a possibilidade de "mudar o sexo" das histórias de espiões. Não exatamente regressando ao esplendor romântico de outros tempos - lembramo-nos, claro, de Greta Garbo em Mata Hari (1931) -, antes apostando numa derivação algo requentada de James Bond, agora com mulheres a defender a humanidade de uma arma (informática, pois claro) capaz de destruir tudo e mais alguma coisa.

Há aqui um daqueles simplismos ideológicos que, atrevo-me a pensar, os feminismos vários que têm proliferado no recente cinema americano teriam interesse em questionar - e nós com eles. A saber: porque é que um banal filme de espionagem com heróis masculinos passa a ser um manifesto artístico (e, nessa medida, um statement moral) quando são mulheres a protagonizar a mesma banalidade?

Enfim, esta descrição pessimista não faz justiça à excelência dos talentos envolvidos. A começar por Jessica Chastain, atualmente em destaque em duas ofertas do streaming: a mini-série Scenes from a Marriage (HBO) e o filme Jogo da Alta-Roda (Prime Video). Foi ela que, na dupla condição de atriz e produtora, propôs o conceito de uma variação feminina sobre 007 e a série Missão Impossível ao realizador Simon Kinberg, depois de com ele ter rodado X-Men: Fénix Negra (2019). Chastain e as protagonistas inicialmente escolhidas - Penélope Cruz, Marion Cotillard, Fan Bingbing e Lupita Nyong"o - estiveram mesmo na edição de 2018 do Festival de Cannes para promover o projeto de The 355.

Os resultados são reveladores de uma bizarra insensatez. É verdade que, tentando explorar uma lógica "intimista" que ganhou força nos mais recentes títulos de James Bond - com destaque para os que foram dirigidos por Sam Mendes: Skyfall (2012) e Spectre (2015) -, aqui encontramos alguns momentos de sofisticada vibração emocional, sobretudo a cargo de Chastain e Diane Kruger (que, entretanto, substituíra Cotillard). Mas não é menos verdade que a "obrigação" de tudo pontuar com soluções estereotipadas de ação física (?) vai diminuindo as singularidades com que, apesar de tudo, as personagens femininas foram concebidas - ainda que, convenhamos, Penélope Cruz não consiga emprestar verosimilhança à sua terapeuta colombiana envolvida numa operação da CIA...

Nos momentos mais felizes, Agentes 355 faz lembrar um certo misto de drama e ironia que marcou alguns notáveis filmes de espiões feitos há cerca de meio século - penso, por exemplo, em Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack. É pena que o projeto se vá refugiando num estilo convencional que Simon Kinberg aplica com a eficácia de um tarefeiro sem imaginação. Como se prova, é um risco confiar nos homens.

dnot@dn.pt

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