Io Appolloni: coração independente
Vítor Higgs / DN

Io Appolloni: coração independente

Prova de Vida faz parte de uma série de perfis - este é já o n.º 43 -, por António Araújo.
Publicado a
Atualizado a

A escultural Io Appolloni, hoje rainha do tiramisù, teve uma vida bem cheia, seja no plano artístico, seja naqueloutro mais íntimo, que ela às paredes confessa, e do qual nos tem vindo a dar, de espaço a espaço, certas e breves notas, todas apimentadas. Em Junho de 2021, por exemplo, manteve com Daniel Oliveira uma “conversa aberta e sem filtros” em que falou de um outro Oliveira, esse Camilo e com estilo, pelo qual teve uma paixão assaz tórrida, toda carnalmente motivada: “Apaixonei-me pelo Camilo por causa do sexo. Com o Camilo, descobri o prazer sexual. Descobri que se pode ter 1, 2, 4, 13 orgasmos. Impressionante.”

Mais recentemente, na TV Guia, de 12 de Outubro de 2023, avançou um pouco mais nessa novela camiliana, revelando: “Com o Camilo, no período em que estivemos juntos, se não me falha a memória, fizemos sexo todos os dias. Sexualmente funcionávamos muito bem.” No final da notícia, rematou a TV Guia, com ponta de malícia ou invídia: “O actor acabou por morrer, em 2016, aos 91 anos.” (Itálico acrescentado).

Apesar de já entradota, Io tem mantido presença assídua na mídia, a um ritmo torrencial e quase sempre em registo escandaloso, para dizer o mínimo. Assim, e a voo de pássara pela imprensa mais recente: “Io Appolloni muda de vida e desfaz-se de quinta de 1 milhão” (Correio da Manhã/ Vidas, de 27/1/2021), “Obrigada a mudar de vida aos 76 anos: Io Appolloni põe casa à venda com todo o recheio e memórias” (Flash!, de 19/3/2021); “Io Appolloni vence depressão” (Flash!, de 29/10/2022); “Io Appolloni fica sem carro por causa de dívida de 10 mil euros” (Nova Gente, de 15/10/2023), “Io Appolloni revoltada com a burla da mãe de Sara Barradas: ‘Eu cuspia na cara dela’” (A Televisão, de 4/2/2021); “Io Appolloni ignorada pelos filhos!” (Dioguinho, de 18/10/2023); “Io Appolloni: ‘Mostrava completamente o rabinho, era lindíssimo’” (Impala, de 15/3/2017); “Io Appolloni: ‘Fui a primeira mulher em Portugal a dizer que tinha praticado um aborto. Senti mesmo na carne o que é o horror’” (Expresso, de 28/6/2021); “Io Appolloni não tem netos, mas vai ser ‘avó’ em experiência com famosos” (Jornal de Notícias, de 25/2/2020); “Io Appolloni foi atropelada e o condutor fugiu” (Correio da Manhã/Vidas, de 27/6/2021); “Filho de Io Appolloni burlado por mãe de Sara Barradas” (idem, de 5/2/2021); “Io Appolloni dá passo atrás e vai participar no Hell’s Kitchen - Famosos” (Dioguinho, de 6/6/2023); “Io Appolloni fez uma cirurgia plástica à cara e ao pescoço” (Caras, de 9/4/2008). “Io Appolloni assume ter sido vítima de violência doméstica” (Impala, de 16/3/2017), “Io Appolloni dá estouro em Marco Paulo” (Dioguinho, de 21/8/2021); “Io Appolloni vs. Diogo Amaral. Uma história de amor-ódio entre concorrentes” (SIC, 20/12/2023); “Io Appolloni doente desde que veio da Tribo!” (Por Outro Olhar, de 24/5/2011); “Io Appolloni revela história de sexo clandestino em livro” (Sábado, de 3/3/2017); “Sozinha e sem ninguém. Io Appolloni acusa filhos de se esquecerem dela” (Notícias do Jet7, de 18/10/2023); “Io Appolloni desmente notícias da imprensa” (Goucha, de 27/7/2021); “Io Appolloni fala sobre ausência de Sara Barradas: ‘Levava porrada se aparecesse no funeral’” (Correio da Manhã/Vidas, de 21/5/2021).

Eis uma pálida imagem do que tem sido a vida pública desta mulher-furacão, por uns chamada “a mais portuguesa das actrizes italianas”, por outros “a mais italiana das actrizes portuguesas”, já que, na verdade, Io tem duas pátrias, a transalpina e a lusa, tendo a primeira começado em 19 de Março de 1945, em Camino di Verchiano, Concelho de Foligno, Perúgia, com o nome de Giuseppa (Giuseppina) Appolloni, e a segunda em Lisboa, a 19 de Março de 1975, quando foi naturalizada portuguesa como Jusepa Appolloni.

Nasceu na miséria, ou quase, pois seu pai, Bernardino Appolloni, recusara filiar-se no Partido Fascista e alinhar com os Camisas Negras, e, em resultado disso, ficou sem trabalho na lavoura, sendo obrigado a fazer-se sapateiro; a mãe, Giacomina, era doméstica, cuidava da casa e dos quatro filhos, num núcleo familiar a que se juntavam o irmão do pai de Io e a sua mulher, mais dois filhos destes, formando um agregado de 10 pessoas que tentavam sobreviver entre os escombros de uma Itália devastada pela guerra.

Antes de Io nascer, os Appolloni tiveram outra menina Giuseppina, que faleceu aos 17 meses, não lhe valendo o facto de a mãe ter feito uma caminhada de mais de 15 quilómetros a pé, com ela ao colo, para consultar um médico. A futura actriz seria baptizada com o nome da irmã defunta, pese isso ser considerado de mau augúrio, pois nasceu no Dia de São José e era esse o nome do seu avô materno.

Aos 5, 6 anos, ao frio e à chuva da Úmbria profunda, já levava as ovelhas a pastar para o campo, falando ou brincando com elas como se fossem suas amigas ou as bonecas que não teve. Entre as suas recordações de infância, uma missa solene cantada na igreja da aldeia mais próxima, Verchiano, num Natal ou numa Páscoa, e onde ela, sem razão algum, deu por si a chorar copiosamente, episódio que ainda hoje a intriga. Noutra lembrança, recorda-se de que um dia, quando ia ao colo do seu pai num passeio pela aldeia, Bernardino levou-a para casa e improvisou para ela um espectáculo com sombras chinesas que a deixou deslumbrada.

Ao contrário da tia Nunziata, que a mimava muito (“minha querida tia”), tinha uma relação mais tensa com a mãe, mulher rígida e austera, mas ainda assim lembra o facto extraordinário de, um dia, Giacomina lhe ter levado o almoço à escola e de terem ido comer juntas para o meio do campo, num piquenique de burguesas: “Comemos gnocchetti, uma massa que se faz com o resto da massa do pão. Foi uma surpresa que me ficou na memória, aquele sabor e cheiro de pequenos pedaços de massa enrolados e temperados com azeite, alho, tomate, salsa, manjericão e queijo ralado que a minha mãe, imagina, me foi levar”, contou Io ao seu biógrafo, Carlos Quintas, no livro Io Appolloni - Uma Vida Agridoce (Guerra & Paz, 2017), a quem confidenciou outras memórias da sua infância pobre e agreste: “Só tinha direito a uma laranja inteira quando apanhava uma valente gripe… estás a perceber? É que, duma garfada de azeite, saía um pingo para cada um… parece que ainda sinto o cheiro do molho da fettucine feito pela minha adorada tia Nunziata, que me ajudou a nascer. Só muito mais tarde voltei a sentir aquele cheirinho. Sabes porquê? Vim a saber que ela lhe juntava cravinho e que o queijo era das nossas ovelhas, ralado e maduro.”

Quando tinha 10 anos, o seu pai foi para Roma em busca de melhor sorte. Sem profissão definida, Bernardino tocava acordeão nas esplanadas, nos restaurantes, em bares e cafés e, com muito sacrifício e esforço, conseguiu arrendar uma casa no bairro popular de Torpignattara, Via della Marranella (curiosamente, onde Pasolini filmaria mais tarde Accattone), e mandou vir a família para a Cidade Eterna.

Clara, a filha mais velha, casara-se quando Io tinha 3 anos e fora viver para a aldeia do marido, S. Martino, e o irmão Sinibaldo alistara-se nos Carabinieri, em Bolzano, de modo que, para Roma, foram apenas a mãe Giacomina, Io e o mano Gerardo, que se empregou num bar a ganhar 50 liras ao dia e depois, com a ajuda da mãe, abriu um estabelecimento seu no Bairro de Trastevere.

Para matricular a filha num colégio de freiras, Giacomina teve de pedir 30 mil liras a um notário conhecido - “Como não ter admiração por esta mãe?”, pergunta Io, e bem -, mas a rapariga cumpriu, fez a instrução primária, e até se mostrou uma católica devota: ia à missa, comungava todos os dias, gostava de ficar sentada sozinha na igreja, gozando o silêncio de Deus.

Concluídos os estudos básicos, Giacomina quis que Io tirasse um Curso de Corte & Costura, para começar a trabalhar quanto antes, mas o irmão Sinibaldo, numa das suas visitas a Roma, disse que a rapariga merecia melhor destino e persuadiu os pais a pagarem-lhe o Secundário e, mais tarde, um Curso de Secretária Comercial. Viviam-se ainda os tempos negros do pós-guerra e Io lembra-se de, muito nova, ainda ir à igreja buscar farinha, açúcar, chocolate em pó e outros mantimentos que ofereciam aos mais necessitados.

Apesar da pobreza, a jovem era curiosa, sedenta de saber mais, e, por volta dos 12, 13 anos, já era frequentadora assídua do Centro Cultural Americano que abrira na sua rua.

Em 1961, quando estudava para secretária comercial, viu um anúncio para um casting da produtora Titanus, onde procuravam rostos que ombreassem com as das belezas do cinema italiano da época, como Gina Lollobrigida ou Claudia Cardinale. Feita a sessão fotográfica, ficou boquiaberta quando a revista ABC, uma das mais populares da altura, fez uma página inteira com ela, facto que desagradou ao namorado que então tinha, o qual, imagine-se, começou a bater-lhe, roído de ciúmes. “Atirei-lhe o anel e acabou-se!!! Hoje penso com orgulho que foi o meu primeiro gesto revolucionário.”

Pensando em voos mais altos, o irmão Sinibaldo aconselhou-a a tirar um curso de actriz, concorrendo ao Centro Sperimentale di Cinematografia. Entre quatro mil candidatos, Io ficou em 7.º, o que, além da continuação dos estudos, lhe dava direito a uma bolsa de 30 mil liras com almoço incluído.

Dona Giacomina, claro, desaprovou, apavorada com a perspectiva de a filha seguir uma carreira quase igual ao meretrício; durante 20 dias, trancou-a em casa, gritou, esbracejou, argumentou, mas não conseguiu demover Io do seu sonho e intento.

No Centro, teve aulas de dicção, ballet, representação, história da arte e do cinema, equitação, etc., foi aluna de Orazio Costa e de Andrea Camilleri e, por um acaso, tomou café várias vezes ao lado de Elizabeth Taylor e de Richard Burton, que ali gravavam algumas cenas épicas do não menos épico Cleópatra.

Entretanto, e como prémio de boa aluna, foi ao Festival de Veneza de 1963, e aí conheceu Pier Paolo Pasolini, que a convidou para participar, ainda que num papel secundário, nas filmagens de Comizi d’Amore, um documentário sobre os hábitos amorosos e sexuais dos italianos no pós-guerra, com depoimentos de cidadãos comuns e de Alberto Moravia, Giuseppe Ungaretti e Oriana Fallaci, entre outros. Depois disto, fez dois outros filmes, que ficariam inacabados por falta de verba, participou no videoclipe de uma canção com Ornella Vanoni, gravou uma rábula com Carlo Croccolo, fez figuração em A Pantera Cor-de-Rosa, com Claudia Cardinale et all., entre outros trabalhos menores.

Em Outubro de 1963, estreou-se no teatro, no Piccolo dell’Eliseo, com Tino Scotti, em peça cujo nome nem sequer recorda e onde utilizou pela última vez o seu nome de baptismo, Giuseppina. Pouco depois, Lino Haggiag, produtor da Dear Film, sugeriu-lhe que adoptasse um nome mais artístico e apelativo e propôs-lhe “Io”, contracção do latim Iosephus.

Em Veneza, além de Pasolini, conhecera o espanhol Cesáreo González, lendário produtor dos filmes de Sara Montiel, Lola Flores, entre outros, que a convidou a contracenar numa fita com Joselito. Em Novembro de 1963, a mãe acompanhou-a ao aeroporto, onde ela, vestida a preceito, com um casaco cor de mostarda e gola de raposa, embarcou rumo a Madrid e a um cachê milionário de 300 mil liras, além de tratamento de luxo, com hospedagem num hotel de cinco estrelas e motorista à porta. Comprou de imediato um casaco de astracã, mais tarde oferecido à irmã, e, enquanto isso, rodou Louca Juventude, cujas filmagens deveriam durar 20 dias, mas que se arrastaram mais de três meses, tendo por resultado uma película com a seguinte sinopse: “Johnny Durán, de 17 anos e filho de um multimilionário, chega a Madrid para passar as férias. Na capital tornou-se amigo de um grupo de meninos e meninas com quem compartilha grandes momentos, mas logo ele percebe que eles são um clã de bandidos e decide distanciar-se.”

Vítor Higgs / Io Appolloni

Terminadas as filmagens, instalou-se numa bonita casa na Calle Conde de Penhalver, matriculou-se numa escola de flamenco, onde foi aluna do mesmo professor de Joselito, e, claro, continuou a trabalhar, seja como cantora num casino de Gibraltar - a sua primeira experiência vocal -, seja como actriz secundária em Los Pianos Mecánicos, de Juan Bardem (tio de Javier Bardem), onde contracenou ao lado de Melina Mercouri, Hardy Krüger e James Mason.

Na rodagem, feita em Cadaqués, foi alvo de um piropo de um pintor da terra, de nome Salvador Dalí (“usted tiene unos ojos muy bonitos”). E em Madrid, nas tertúlias do Café Gijón, conheceu Miró, que logo ali lhe fez o retrato, num pedaço de papel que, como é evidente, ainda hoje conserva.

Ainda que meteórica, a sua passagem pela cinematografia espanhola captou atenções do lado de cá da fronteira: Magê, a famosa redactora da revista Plateia, escreveu uma crónica sobre ela e deu-lhe honras de capa. Foi sucesso imediato. Eduardo Damas, empresário do Maria Vitória, viu a beldade na revista, contactou-a, contratou-a.

Ainda a fazer 20 anos, Io desembarcou em Lisboa aos 27 de Fevereiro de 1965, tendo a aguardá-la as câmaras da RTP, a imprensa falada e escrita, o empresário Eduardo Damas, Camilo de Oliveira e Florbela Queiroz, esta de vison vestida (e lenço na cabeça). Da língua portuguesa sabia dizer “obrigada”, mas ao fim de dois meses já dava entrada na peça Sopa no Mel, ao lado do galã Camilo, fazendo este de inspector das alfândegas no aeroporto de Lisboa e ela de ingénua turista estrangeira. Na cena, Camilo mandava-a abrir a mala, tirar a roupa, e ela obedecia, até ficar somente de biquíni, em exposição urbi et orbi do seu corpinho bem feito - 1,63m de altura, 54 quilos, medidas 91 x 58 x 91 cm -, com um diamante no umbigo, que Io fazia balancear, enquanto Camilo gemia, todo maroto: “Agite, agite… agite antes de usar!” Urros da plateia.

Já fora do palco, envolveram-se ambos os dois. Ele, 20 anos mais velho e casado, saiu de casa, largou a legítima (que, em vendetta, lhe limpou a conta bancária, deixando-o com cinco contos), e foi viver para um quarto alugado. Por norma, o que acontece num quarto alugado fica num quarto alugado, mas, neste caso, saltou para as páginas 48 e seguintes da biografia oficial de Io Appolloni, que a Carlos Quintas confessou, entre o mais, que “o coração e as hormonas têm muita importância na vida das pessoas, pelo menos para mim” e que “nunca pensara que o acto sexual acontecesse tão assiduamente, quando muito de vez em quando.”

Além desse acto, que é muito e tanto, do romance com Camilo, a actriz recorda o comportamento imprevisível dele, que tanto era capaz de estar uma hora a fazê-la rir com anedotas atrás de anedotas, como logo a seguir ficava neurótico, seja lá o que isso for. De permeio, cenas românticas com toque selvagem, como daquela vez em que ele a levou ao Sanzala, um restaurante africano para as bandas do Campo Grande, e lhe cobriu a cara toda com chantilly, lambendo-a de seguida. Em resultado disso, ou doutra coisa que o valha, Io ficou de esperanças, mas decidiu abortar, de comum acordo com o companheiro. Recorreu ao clandestino, o único que então havia, correu mal, passou uma temporada larga em Santa Maria, onde Camilo a visitou amiúde, tão amiúde que, um dia, conta ela, foram ambos os dois apanhados na cama, para escândalo da enfermeira.

“Éramos mesmo inconscientes”, remata Io, que connosco partilha também: primo, que teve um momento místico enquanto actuava no Casino da Madeira, em função do qual decidiu terminar a relação amorosa, mas, uma vez regressada a Lisboa, foi tal o apelo das carnes (ou, nas suas palavras “o poder atómico do sexo”) que tudo ficou como dantes; secundo, que, uma vez, estando os dois a jantar no restaurante Manel, ao Parque Mayer, a legítima de Camilo irrompeu por ali adentro e, puxa não puxa, vai que não vai, atirou-lhe a ele, a ele Camilo, uma garrafa à cabeça, que por um triz falhou o alvo, isto é, a cabeça de Camilo; tertio, que, por andar envolvida com Camilo, homem casado, foi chamada à PIDE, a qual lhe deu 48 horas para abandonar o país, mas que, sendo um dos autores da revista Sopa no Mel, Aníbal Nazaré, compincha e amigalhaço de Silva Pais, director da sinistra, acabou por ficar tudo nas já clássicas e bem portuguesas águas de bacalhau (codfish waters).

De seguida, novas e populares rábulas em Viva o Velho, no Maria Vitória, peça em que António Mourão imortalizou “Ó Tempo, Volta para Trás”, e Esta Lisboa que eu Amo, no Monumental, em 1966, pela mão de Vasco Morgado, contracenando com vedetas como o citado Camilo, Maria Dulce, José Viana, Nicolau Breyner, Carlos José Teixeira e a malograda Anabela. Fazia de turista estrangeira, como sempre, e teve um sucesso estrondoso: sala de mil pessoas, esgotadas duas sessões por dia; actuações todos os dias da semana, incluindo aos sábados e aos domingos (nestes, com três sessões: matiné e duas nocturnas); uma loucura durante dois meses e meio, até que, vá-se lá saber como e porquê, “um dia embrulharam-se todos à pancada e… pum!!! Acabou!”

Em menina, Io tivera uma paixão platónica por Napoleão Bonaparte e pelo seu cavalo branco. Agora, a conjunção carnal com Camilo, apesar de favorecida pelos astros (in casu, Leão e Peixes), atravessava alguns sobressaltos, os quais não impediram, contudo, a nascença de um filho em comum e que Io prosseguisse a sua carreira brilhante: esteve na Broadway e no Brasil, estrelejou em Duas Pernas e um Milhão (Capitólio, 1967) e, sobretudo, acima de tudo, em O Vison Voador, a convite de Raul Solnado, e com um elenco de luxo: Artur Semedo, Vasco de Lima Couto, Maria Paula, Fernanda Borsatti, Giorgina Cordeiro, David Silva, Maria Gonzaga, e encenação de Paulo Renato. A seguir, Alto Lá Com Elas, no ABC, 1970, ao lado de Camilo de Oliveira, Ivone Silva, Tony de Matos e a infausta Maria Laurent, que escandalizaria Lisboa, no Verão Quente de 1975, ao fazer nu integral em Mostra-me a Tua… Piscina, mas “que infelizmente, por diversas razões pessoais, teve um fim triste e trágico”, refere Carlos Quintas na biografia da sua santa Appolloni.

Esta, entretanto, andou em tournée pelas áfricas - Angola, Moçambique, África do Sul - com a peça O Vison Voador, tendo chegado a actuar para as tropas portuguesas aí estacionadas em combate. No regresso a Lisboa, coisa menos coisa, descobriu que Camilo a enganava, ademais com uma colega, actriz ligeira e feiíssima.

Saiu de casa, com fragor e estrondo, levando apenas os lençóis bordados com o seu nome, três colheres, três garfos e três facas, e foi viver para o apartamento que tinha comprado em Miraflores. Apesar da ruptura, e porque, como diz, “trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”, iria contracenar com Camilo em Uma Cama Para Toda a Gente (Teatro Laura Alves, 1972).

Em Fevereiro de 1972, na casa de Artur Semedo, conheceu um homem charmoso e culto, jornalista e crítico de cinema, Eduardo Geada, ao qual se atirou “desavergonhadamente” e com quem, não muito depois, iniciou uma relação duradora. Graças a ele, diz, começou “a ver o mundo por um outro prisma”, mais intelectual e sério, menos revisteiro e brejeiro. Ao lado de Luís Nunes e de Artur Semedo (e, já agora, de David Mourão-Ferreira e de Eduardo Prado Coelho), entrou no primeiro filme dele, Sofia ou a Educação Sexual, de 1973, obra dividida em três partes - Iniciação, Prática, Recapitulação - e que versa uma jovem da alta burguesia, recém-regressada de um colégio da Suíça, que se instala no chalé de família, em Cascais, e aí descobre que o pai atraiçoa a mãe com uma Laura. A censura marcelista, obviamente, não permitiria a exibição da película, a qual só seria estreada após o 25 de Abril, a 1 de Outubro de 1974, no cinema Estúdio 444, então gerido por Almeida Faria.

Logo depois de Sofia, regresso aos palcos, com A Cama dos Comuns (Variedades, 1973, com Simone, Ruy de Carvalho, Canto e Castro, Manuela Maria, Armando Cortez) e Ralações Sexuais (Villaret, 1974, com Badaró, Guida Maria, Carlos Coelho e Pedro Pinheiro).

O 25 de Abril apanha-a em Elvas, onde se encontrava em tournée com Dois no Guarda Vestidos

Io, que na altura andava a ler Portugal e o Futuro, recorda a confusão no elenco, com Guida Maria a gritar para regressarem ASAP  a Lisboa, Carlos Coelho a querer fugir para a sua casa na aldeia e o produtor a decidir que deviam continuar a actuar, o que fizeram em Vila Viçosa, ainda nesse dia inicial, inteiro e limpo, sem que na plateia se notasse especial frémito revolucionário. Só no dia 1 de Maio, regressada a Lisboa, pôde enfim abraçar o companheiro e festejar a liberdade.

Pela mão de Rogério Paulo, filiou-se no PCP, enquanto Geada optou por navegar nas águas turvas do MES. Em 1975, ano em que obteve a nacionalidade portuguesa, largou de vez o teatro comercial e tentou entrar em vários grupos de teatro experimental, independente ou de pesquisa, mas todos lhe fecharam as portas, não querendo no seu elenco uma antiga vedeta da revista.

Vedada esta via revolucionária, acompanhará o companheiro por terras da Guarda, onde este fazia um documentário sobre as fundas transformações em curso, e, no âmbito das campanhas de dinamização cultural do MFA, chegou a formar um grupo de teatro em Manteigas, do qual pouco ou nada se sabe. Em contrapartida, sabe-se, isso sim, porque ela o conta, que Io Appolloni e umas colegas foram proibidas de visitar o quartel local, onde iam amiúde para doutrinação e convívio, com o argumento, algo bárbaro e fascista, de que andavam a desencaminhar a soldadesca viril.

Embrenhado na Revolução, Geada quase se esqueceu dela. Passavam meses sem falarem um com o outro e, às tantas, Io começou a dizer às amigas que, mais cedo ou mais tarde, aquela relação tão aberta acabaria por terminar. Antes disso, tiveram uma filha juntos e Appolloni entrou em mais duas fitas dele, O Funeral do Patrão, de 1975, e A Santa Aliança, de 1980, ambas bastante representativas do “cinema militante” daquela época: uma abordando uma greve numa fábrica e um patrão explorador; outra lidando com uma importante família de financeiros à nora com a Revolução, com Io no papel de “militante ingénua e voluntarista” e Lia Gama como uma “burguesa excessiva que se entendia, transgride e morre”.

Entretanto, Geada partiu para Londres, com uma bolsa de estudos, e pouco ou nada lhe ligou enquanto lá esteve. Quando regressou a Lisboa, a relação estava terminada e Io, de novo só, entregou-se toda ao teatro ou, mais precisamente, a Guilherme e Marinela, que subiu ao palco no Satélite, em 1978, e que era uma peça antimachista, cujo cartaz provocante, com ela nua de costas, sentada sobre os calcanhares, fez esgotar as bilheteiras de Lisboa e Porto. As imagens promocionais acusavam, de resto, alguma crueza, pois sobre o seu corpo estavam recortadas as partes da carne da vaca, daquelas que vemos no talho, com um acém para o lado, a pá para outro, o cachaço e lombo e por aí fora, graça que a levou a ser chamada à Judiciária, por ofensa à dignidade das mulheres (e a RTP, é claro, apesar de ter gravado a peça, nunca a mandou para o ar). Em 1979, nova chamada à Gomes Freire, desta feita por ter revelado no Directíssimo, de Joaquim Letria, que já tinha feito um aborto.

Nos Anos 1980, viveu um novo amor, um engenheiro de som do Teatro Nacional, que com ela manteve uma vida dupla, pois era e permaneceu casado, e que, cinco anos volvidos, no estertor da relação, chegou a agredi-la com certa violência. Mais tarde, no Festival de Cinema de Tróia, conheceria um “professor universitário de Ciências Sociais e Humanas”, dotado de uma “consciência política poderosa.” Deu-se o “clique”, dixit ela, sem nomear o marido. 

Em 1995, outra mudança de vulto: depois de ter tirado um curso na Escola de Hotelaria de Lisboa e feito um tiramisù no programa Parabéns, de Herman José, decidiu trocar os palcos pelos fogões, dedicando-se de corpo e alma à culinária doceira, fazendo jus, alvitramos nós, à primeira máxima de Brillat-Savarin, segundo a qual “o universo não é nada sem a vida, e tudo o que vive se alimenta.” (Fisiologia do Gosto, trad. portuguesa, Relógio D’Água, 2010, p. 33). 

Dois anos depois, deu à estampa Os Doces da Io, com prefácio de Maria de Lourdes Modesto e fotos de Homem Cardoso, galardoado com o Garfo Literário, do Instituto do Gosto e dos Aromas, e começou a vender para fora: primeiro perto de casa, no Le Petit, de Algés, depois para O Polícia, o Pingo Doce, o Continente, o bar do Instituto de Beleza Ayer, a Casa do Marquês, o Casino do Estoril.

Foi tal o êxito que, às tantas, a cozinha da casa de Miraflores não dava para as encomendas. Com os lucros, comprou um terreno em Cabanas de Palmela, construiu uma casa espaçosa, onde pensou terminar os dias com o novo companheiro, não se tivesse dado o caso de este a ter atraiçoado e, depois, abandonado. Io refugiou-se então na cozinha e no ioga, bem como no poder dos astros. Um profissional deste ofício prognosticou, porém, que, a partir dos 50 anos, iria ficar só, sem ilusões, mas que iria ter uma vida bonita - e que morreria em Portugal.

Desde aí, entrou em algumas novelas (v.g., O Último Beijo; Floribella; Água de Mar; Mar Salgado), participou no filme Transe, de Teresa Villaverde, mas escassearam os convites para o que mais gostava - o teatro - e os negócios da culinária entraram em plano inclinado. Em 19 de Março de 2012, dia do seu aniversário, foi ao contabilista e fechou para sempre a empresa, com o atendível argumento de: “Não quero aturar mais filhos da puta, quero viver mais alguns anos!”

A participação em dois reality shows (Perdidos na Tribo, de 2011, e Hell’s Kitchen - Famosos, de 2023) fê-la entrar, em definitivo, na esfera do “social” e das revistas cor-de-rosa, que têm animado com os ingredientes da praxe: desavenças familiares, maleitas do foro psíquico, trapalhadas nos negócios, confissões muito escaldantes.

Militante do PCP durante anos, até por respeito à histórica Alda Nogueira, sua madrinha de casamento, hoje está apolítica, mas sempre vai dizendo, entre o mais, que é excessivo o número dos deputados que temos. Por ora, está mais serenada, ou antes assim parece, mas cuidado, que esta donna è mobile e nunca se sabe onde bate e como bate um coração independente como o dela.

Um dia, muito criança, quando apascentava as ovelhas na sua Úmbria natal, chovia que Deus a dava, perdeu as socas na lama, nunca mais as encontrou. Hoje é actriz famosa, conheceu Dalí, Miró, James Mason, Elizabeth Taylor, Richard Burton, e pode orgulhar-se de ter tido uma vida plena e intensa, toda feita por ela, uma mulher de garra e de raça, e, logo, com muita graça.


Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt