Van Gogh: retrato do artista atormentado
O cinema tem um fascínio especial por Vincent van Gogh, e é fácil perceber porquê. A personagem trágica do pintor holandês que cortou a orelha e que morreu com apenas 37 anos de uma bala que não se sabe se foi disparada pelo próprio, é matéria de peso para qualquer retrato cinematográfico. Nomes como Vincente Minnelli, Robert Altman, Maurice Pialat e mesmo Alain Resnais - com a sua curta-metragem documental vencedora do Óscar - trouxeram ao ecrã o mistério dessa figura que se tornou o arquétipo do artista enquanto homem em permanente luta com os demónios interiores. E de entre estes filmes, foi o de Minnelli (A Vida Apaixonada de Van Gogh, 1956) que deu a conhecer o ator modelo desse talento psicologicamente inflamado: Kirk Douglas.
Ora se é verdade que ninguém como ele se deixou possuir pela tempestade mental do pintor (Douglas escreveu na autobiografia que nunca mais poderia voltar a interpretá-lo, por risco de cair no abismo do seu tormento), Willem Dafoe surge agora como o ator que transforma essa possessão num êxtase contemplativo. Isto porque À Porta da Eternidade é o filme de um artista, Julian Schnabel, sobre outro artista, e o seu olhar busca, mais do que as linhas convencionais de uma narrativa, a essência de um processo criativo. Ou seja, é como se Schnabel auscultasse os devaneios e sensações da personagem para transmitir ao espectador uma ideia do que "significa" ser artista.
Nessa medida, estamos perante uma obra que não se orienta propriamente pelo rigor histórico, nem o deseja fazer, já que o mito à volta do pintor deixa um território vasto para a interpretação. Centrando-se nos últimos anos da vida de Vincent van Gogh passados em França (Arles e Auvers-sur-Oise), o filme constrói-se a partir de fragmentos e episódios que ilustram uma meditação sobre a arte - em diferentes ocasiões, nesses dias em que encontrou inspiração na luz da Provença (onde completou 75 quadros em 80 dias), vemos Van Gogh/Dafoe tecer considerações sobre o ato de pintar, nomeadamente explicando ao amigo Paul Gauguin/Oscar Isaac que só consegue viver o gesto criativo segundo as leis de um furor momentâneo. Será por essa razão que o realizador de O Escafandro e a Borboleta assume também ele uma câmara irrequieta e nervosa, que parece procurar fazer o retrato do artista em pinceladas grossas, deixando uma impressão de tinta fresca no ecrã.
O argumento, que conta com a colaboração do veterano Jean-Claude Carrière, baseia-se nas cartas trocadas entre Van Gogh e o seu irmão Theo (Rupert Friend), que lhe deu apoio financeiro para prosseguir a via artística. E se é certo que as reflexões extraídas dessa correspondência envolvem o filme numa atmosfera subjetiva, poética e de imersão sensorial, não deixa de ser percetível que esse mesmo discurso de pendor emotivo e filosófico se torna, a determinada altura, num fardo. Ou seja, o sentido de elevação espiritual que Schnabel privilegia, e o excesso de pensamentos "pronto-a-citar", por vezes interferem com o próprio sortilégio da humanidade pura de Willem Dafoe - ele que tem aqui uma das mais absorventes interpretações da sua carreira, equivalente à memorável de Jesus de Nazaré em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese.
É precisamente na intensidade da expressão de Dafoe que vislumbramos "a porta da eternidade". Schnabel filma o seu rosto como se captasse a mesma vibração que o holandês via nas paisagens que passava para a tela. E entre a vulnerabilidade e a determinação, temos neste Van Gogh a imagem, estranhamente graciosa, do ser entregue a um lirismo íntimo que acaba por ser sinónimo da agonia do homem inadaptado; esse que encontra mais empatia no vigor da natureza do que no semblante naqueles que o rodeiam.
Esta devoção romântica evidencia-se, por exemplo, quando a lente impressionista do realizador-pintor segue Dafoe numa corrida pelos campos de Arles como que reproduzindo um sentimento místico de liberdade, a combater a angústia dominante. Algo que de alguma maneira pode resumir a idiossincrasia do filme: À Porta da Eternidade é, à semelhança dessa corrida, um exercício diáfano sobre a alma torturada de um génio artístico incompreendido no seu tempo (recorde-se que em vida só conseguiu vender um quadro).
Muito diferente da animação de tom policial que Dorota Kobiela e Hugh Welchman assinaram em 2017 - A Paixão de Van Gogh -, feita a partir de quadros que simulam o traço do artista, este novo filme de Julian Schnabel convoca-nos antes para a experiência interior de Vincent van Gogh patente numa frase usada nas cartas que trocou com outro amigo pintor, Anthon van Rappard: "eu quero pintar o que sinto e sentir o que pinto".
** Com interesse