Roncas de Elvas. Quando a tradição volta a ser o que era
Capote, boné e ronca segura nos braços. A garrafa de água não pode faltar, porque é preciso molhar a mão que vai friccionar a cana. Só assim será emitido o ronco que acompanha os seculares cantares ao Menino no Natal de Elvas. Agora o grupo já está pronto para atuar em qualquer palco, igreja, rua, tasca. Sem grandes compromissos com regras, tons ou alinhamentos. Há espaço para todos cantarem. Desde quadras históricas aos versos feitos na hora. O que importa é que a tradição se faça ouvir em alto e bom som. E garanta longa vida.
É o novo fôlego do tradicional Natal elvense que se ergue à boleia das Roncas de Elvas, depois da tradição - que os da terra classificam de ancestral - ter chegado a estar ameaçada. A anterior geração segurou os cantares até que a voz lhe doeu, chegando mesmo a gravar um CD no início do milénio que ainda hoje enche as ruas da cidade na quadra natalícia.
Além deste testemunho e de algumas gargantas que teimaram em não se calar pela natividade em meia dúzia de tascas e algumas casas particulares, pouco mais sobrava da tradição. Aos poucos a ronca - esse sui generis instrumento, regra geral, feito de barro, em forma de manilhas ou alcatruzes - deixou de ser ouvido ao vivo pelas ruas.
Até que um grupo de "sobreviventes" decidiu deitar mãos à obra para retomar a tradição. Juntaram-se em 2015 e logo aí recriaram o mais popular Natal de Elvas. A semente estava lançada à terra para reativar um património imaterial singular em Portugal.
"O objetivo do grupo é revitalizar este património da cidade e divulgá-lo, para que o próprio país possa conhecer esta tradição que acaba por ser uma das marcas da própria cidade", explica Carlos Beirão, presidente da Arkus, a Associação Juvenil que acolheu o projeto que junta, por exemplo a veia poética de José Martins, à arte de fazer roncas de Fernando Couto, enquanto Carlos Mendes ergue um exemplar que rondará os 500 anos. Uma manilha extraída do algeroz de um convento datado do século XVI.
Daí que em dezembro de 2015 a população tivesse sido surpreendida pela saída do grupo à rua, voltando a ouvir - de viva voz - os cantares que incluem quadras e músicas eternas do cancioneiro elvense. "Olhei para o Céu", "O Menino foi à lenha", "Aqui estou à tua porta", para citar apenas alguns dos pontos que toda a cidade sabe de cor, ainda do tempo em que as consoadas se faziam de "roncalhada" pela noite dentro na casa dos avós.
A maioria dos versos terão sido escritos entre os séculos XVIII e XIX - sendo quadras populares é difícil identificar autor e data - enquanto a assinatura do etnógrafo António Tomás Pires figura entre os principais autores. Contudo, há estudos que admitem a existência de uma quadra hipoteticamente quinhentista: "O Menino que nasceu/ Da Virgem cheia de graça/ Entrou e saiu por Ela/ Como o sol pela vidraça".
Já com o grupo na rua, eis que surge uma curiosidade acrescida: três mulheres trajadas a rigor entre os homens a cantarem ao Menino. Facto inédito na terra. É que, até aqui, só os homens percorriam a cidade na noite de Natal para cantarem às portas que se abriam à sua passagem, enquanto os donos das casas ofereciam o que tinham na mesa da consoada. Pela madrugada fora.
Sim, a presença das três mulheres começou por ser estranhada, mas ao se juntarem à festa Mariana Meireles, Vitorica Mendes e Raquel Real abriram a porta à entrada de mais três elementos femininos nos dois anos seguintes: Beatriz Dores, Sofia e Inês Rego. E há mais candidatas que se querem juntar ao grupo que tem hoje 18 elementos, com uma abrangência de idades que se vai dos 9 aos 72 anos.O professor de Música Nuno Roque assume o papel de ensaiador.
Se os dois primeiros anos foram de implementação - ainda a tempo de gravar o primeiro CD - o Natal de 2018 garantiu a afirmação, muito devido ao mediatismo alcançado nos órgãos de informação e redes sociais. A curiosidade em torno do instrumento levou o grupo a atuar em Lisboa (na praça do Município e em arruada popular na Rua Augusta), Pampilhosa da Serra, Nelas, Badajoz, Ponte de Sor entre outras localidades.
A maioria das mais de 40 atuações teve palco em Elvas, enchendo as ruas da cidade de ritmos natalícios, embora o grupo tenha feito questão de atuar em todos os lares do concelho. Afinal, é por ali que as roncas despertam a nostalgia, permitindo uma viagem ao passado entre os utentes até às noites da consoada em que se cantava ao Menino. Mesmo os idosos mais "desligados" do mundo tendem a reagir quando ouvem as quadras eternas.
Aliás, radica aqui a principal função das Roncas de Elvas: manter a tradição numa inequívoca homenagem aos antepassados. Que o diga Luís Rasquilha, que não falha a quadra que fala de uma boleta que a avó Sant´Ana ofertou ao Menino Jesus, enquanto eu entrei no grupo ao segundo ano para estender a memória do meu pai, o grande dinamizador e a voz dos cânticos do Natal de Elvas. José Dores já foi homenageado a título póstumo por um grupo de amigos que descerrou uma placa na fachada da casa onde viveu alusiva ao seu empenho na promoção das roncas.
António Afonso assume o papel de decano do grupo, colocando-se ao lado de Fernando Dores e Vítor Meireles entre os que nunca deixaram de cantar a quadra. Nuno Borrego empresta conhecimento musical e está apto a pegar na guitarra portuguesa, com José Belfo, um amante da história da cidade, a traduzir a mais recente aquisição.
Em ano dito normal as atuações deveriam ter terminado a 6 de janeiro (Dia de Reis) depois de terem começado a 8 dezembro (Dia de Nossa Senhora da Conceição), mas convites de última hora levaram o grupo a prolongar o Natal para fora de época até final do mês. Outra vez em nome da tradição.
O que é a ronca?
A ronca é uma vasilha de barro, à qual se ata na boca uma pele de coelho ou de borrego, tendo presa ao centro uma cana muito delgada. É friccionando essa cana com a mão humedecida que se tira da ronca um som cavo, ou ronco arrastado, com o qual se acompanha na quadra de Natal os cantes ao Menino. Este instrumento musical foi muito provavelmente introduzido na Península Ibérica, a partir do séc. VIII, com a chegada de diversas tribos berberes do norte de África, donde será original