Rafael aprende malabarismo e conta os dias para sair da prisão

Ao longo de três anos, os jovens detidos no Centro Educativo Padre António Vieira aprenderam várias técnicas circenses. No sábado vão mostrar ao público o seu espetáculo: "Forças Combinadas"
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"Hoje é dia quê?", pergunta Rafael enquanto faz contas de cabeça para concluir: "Estou aqui há um ano e 12 dias. Saio no dia 8 de julho. Está quase, já faltou mais." Há um ano e 12 dias preso. Detido. Fechado. No Centro Educativo Padre António Vieira, em Caxias. Rafael tem 16 anos e conta com precisão os dias que são todos iguais. "Levantamo-nos, fazemos a faxina, tomamos o pequeno-almoço e vamos para as aulas. À tarde, tomamos banho, jantamos e vamos para a sala." É assim todos os dias, exceto aos fins de semana. Ao sábado e ao domingo não há aulas. É dia de visitas, para quem tem visitas. E é dia de circo.Depois do almoço, os 24 rapazes do centro atravessam o pátio e vão para a tenda vermelha e azul, descalçam os sapatos, põem música a tocar e fazem coisas fantásticas: andam com as mãos nos chão e os pés no ar, dão saltos mortais, caminham sobre uma bola gigante, balançam no trapézio, fazem malabarismo com três bolas a girar ao mesmo tempo no ar. Senhoras e senhores, meninos e meninas, o espetáculo vai começar.

Esta atividade faz parte do projeto "Forças Combinadas" que o Chapitô desenvolveu ao longo de três anos no Centro Educativo Padre António Vieira, inserido na 2ª edição do programa PARTIS - Práticas Artísticas para a Inclusão Social, com financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian. Durante 36 meses, Cláudia Nóvoa, professora do Chapitô, e mais uma série de outros formadores e animadores, vieram todos os fins de semana, trabalhar com os rapazes que ali estão cumprindo penas de um, dois, três anos de prisão, condenados por diferentes tipos de crimes, sendo os mais frequentes os assaltos com recurso à violência. O Rafael diz que roubou telemóveis. O Henrique, também de 16 anos, confessa "furtos e facadas". O Leonardo, com a mesma idade, admite que fez "muita porcaria".

Ao início, ainda não havia a tenda. "Estávamos lá dentro, num edifício do centro, e foi muito mais complicado porque estávamos no espaço deles. A tenda trouxe uma outra respiração, de liberdade, é um outro espaço para onde eles podem vir, e acaba por ser um ritual", explica Cláudia Nóvoa. Na tenda, de onde se vê ao fundo o rio Tejo, quase que nos esquecemos que estamos numa prisão. Não fossem os dois seguranças, de pé, sempre atentos, e nem nos lembrávamos que, quando terminar o ensaio, estes rapazes não vão poder jogar videojogos nem perder-se em conversas no telemóvel como os outros da mesma idade.

"São miúdos mas já sabem muita coisa da vida, vêm de bairros complicados, quase sempre de famílias desestruturadas", alerta Sandra Barbosa, diretora deste centro. "Eles precisam deste espaço para brincar, para voltarem a ser meninos." Uma atividade como esta tem como objetivos, antes de mais, ajudá-los a desenvolver competências pessoais (por exemplo, o autocontrolo) e sociais (como o trabalho em equipa). "Existem muitas ansiedades, eles têm medo de não ser capazes e trabalhamos muito essas inibições perante si próprios e perante os outros, a autoestima." Ao longo das sessões, os rapazes vão aprendendo várias técnicas circenses: aéreos, equilíbrios, acrobacia, dança, malabares.

O objetivo é criarem, em conjunto, um espetáculo e apresentá-lo ao público - como fizeram no natal, para as famílias, e como vão voltar a fazer no próximo sábado, numa apresentação integrada no programa "Isto é PARTIS". "No final, é uma conquista. Eles sentem-se orgulhosos, satisfeitos por terem conseguido aprender tantas coisas e por mostrá-las aos outros", garante Sandra Barbosa.

Se a adolescência é sempre uma fase difícil, imagine-se aqui, onde um grupo de rapazes vive em conjunto, 24 horas por dia. "Existem muitos atritos entre eles mas também muita solidariedade", explica Cláudia Nóvoa. "Eu vim para fazer direção artística mas até conseguir dirigir alguma coisa há todo um caminho a fazer que não é nada simples." Um caminho que passa por ganhar-lhes a confiança e convencê-los de que aquilo não é uma seca. Afinal, a atividade decorre naquele que é supostamente o seu tempo livre, tempo que eles costumam usar para estar a ver filmes ou a descansar. "Há dias em que lhes apetece muito, há dias em que não querem fazer nada. Estas sessões dependem muito do estado de espírito deles. Há uma resistência muito grande à repetição, ao ensaio, fazem uma vez e no dia seguinte acham que está tudo feito e já não é preciso repetir. Estamos sempre aqui em compromisso, em negociações. Eles dizem quase sempre que não e têm receio da exposição mas depois vão adquirindo competências várias."

O grupo é muito dinâmico. Há rapazes que terminam a pena e saem. Outros novos chegam. Os que estão no centro há mais tempo já estão no regime semi-aberto e vão no fim de semana a casa. E ainda há aqueles que por algum motivo estão de castigo e não podem participar na atividade. "Raramente conseguimos estar todos", lamenta a diretora artística. Pelo meio, vai-se trabalhando.

No espetáculo do ano passado, trabalharam a questão dos muros (para que servem, como ultrapassá-los). Este ano, exploraram o que sentiam quando estão no palco, expostos ao olhar do outro. É por isso que o espetáculo começa com papéis invertidos: o público na arena do circo, os rapazes a fazerem malabarismo na bancada de madeira. "A maioria diz que tem vergonha, que está nervoso", revela Cláudia Nóvoa. "Mas depois de empurrados eles vão e superam-se e descobrem que são capazes de coisas que a maioria das pessoas não é capaz, como fazer malabarismo e subir para o trapézio. E isso é muito importante para a autoestima."

Leonardo lembra-se que das primeiras vezes ficava nervoso mas agora já está à vontade no palco: "Sente-se sempre aquela coisinha na barriga mas é bom", diz. Leonardo já tinha estado internado no Centro Educativo Navarro de Paiva. Saiu em setembro de 2017. Mas durou pouco a sua liberdade. Em maio do ano passado chegou aqui. "Teve que ser." Encolhe os ombros, resignado. Fez um curso de jardinagem e agora, nestes dois anos que tem para cumprir, vai tentar fazer o curso de reparação e instalação de computadores que lhe dará equivalência ao 9º ano.

Henrique lembra-se de ter ido ao circo algumas vezes, em criança, mas não era algo de que gostasse muito: "Achava que era muito difícil mas agora já percebi que é só treinarmos." Confessa que quando apresentaram o espetáculo, em dezembro, ao princípio "estava com uma beca de vergonha". "A tenda estava cheia, vieram os meus pais, os meus avós e os meus irmãos. Eles gostaram. E eu depois fiquei contente." Apesar de já ter 16 anos, Henrique ainda está a tentar tirar o 5º e 6º anos. "Gostaria de fazer até ao 9º ano mas enquanto cá estou só vou conseguir tirar o 6º completo, depois vou sair daqui com 18 anos e já não vou estudar mais, vou trabalhar. É pouco. Talvez consiga mais tarde." Henrique não faz muitos planos a longo prazo nem sabe que trabalho poderá ter no futuro. O que ele gostava mesmo era "de não fazer nada, ficar em casa e ser rico".

"Forças Combinadas", o nome do projeto, é um elemento acrobático em que duas ou mais pessoas se juntam e fazem elementos de equilíbrio, há um que segura e evita que o outro cai." E isso é uma metáfora para a vida, temos que nos segurar uns aos outros, sem o outro não somos ninguém", afirma Cláudia Nóvoa. É uma metáfora também para este trabalho que tem sido aqui feito: "Eles sabem que nós estamos aqui, que não nos vamos embora e não desistimos deles. E mesmo que às vezes pareça o contrário, acho que é importante eles saberem que não desistimos e que os obrigamos a ir um bocadinho mais longe."

Depois do malabarismo, dos saltos, do equilíbrio, da dança, do trapézio e do pano, começa a ouvir-se uma batida de hip hop, os rapazes pegam no microfone e cantam. "Foram eles que pediram para cantar. É engraçado porque eles têm muita dificuldade em expor-se mas depois nas letras expõe-se completamente. Escrevem muitas letras e são muito verdadeiros", diz a professora do Chapitô. O rap não conhece grades. Pedro debita rimas sobre a sua amada, Luís revela-se arrependido pelos crimes que cometeu e pede desculpas à mãe: "Sinto a tua falta, não fazia ideia, sem ti a minha vida fica mais feia", canta, com a boca colada ao microfone e os olhos pregados no chão: "Eu queria ir para casa, que a medida passe rápido."

Programa

Isto é PARTIS: Entre os dias 23 e 27 de janeiro, alguns dos projetos apoiados na segunda edição PARTIS vão mostrar-se ao público. A entrada é sempre gratuita:

23 de janeiro - 13 de fevereiro - Ordem dos Arquitetos (Lisboa) - Exposição "Ilha" com fotografias de Paulo Pimenta e de participantes da Associação O Meu Lugar no Mundo e do Centro Social Senhor do Bonfim

25 - 27 de janeiro - sede da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) - Exposição "Refúgio e Arte: dormem mil cores em meus dedos" que documenta o projeto do Conselho Português para os Refugiados dirigido aos jovens residentes na Casa de Acolhimento para Crianças Refugiadas

25 janeiro
10:00 - 17:30 - Conferência Arte e Comunidade: diálogos irrequietos, com participantes dos vários projetos PARTIS

26 janeiro
10:00 - Centro Educativo Padre António Vieira (Caxias) - Performance "Forças Combinadas" seguido de workshop em que os jovens ensinam algumas técnicas circenses ao público (inscrição prévia)
16:00 - sede da Gulbenkian - Concerto "Renascer", obra encomendada pela autarquia do Fundão, pretende assinalar a coragem da população da Gardunha após os incêndios do verão de 2017. Dirigida pelo compositor Luís Cipriano, a peça é interpretada utilizando utensílios agrícolas (bilhetes levantados no dia)
18:00 - Sala polivalente da Gulbenkian - Filme-concerto "Curtas Migratórias", realizado no âmbito da formação "Do Filme à Música", orientada por António-Pedro e promovida pela Artemrede com jovens dos municípios de Almada, Barreiro, Moita, Oeiras, Santarém e Sesimbra (bilhetes levantados no dia)

27 janeiro
16:00 - sede da Gulbenkian - Concerto "Xilobaldes", criação do projeto Tum Tum Tum a partir da temática do desemprego com jovens de Porto, Gondomar e Matosinhos (bilhetes levantados no dia)
18:00 - sala polivalente da Gulbenkian - Documentário SOMA, projeto desenvolvido pela Vo'Arte que trabalhou com crianças entre os 5 e os 16 anos de escolas do Ensino Básico de Lisboa, integrando também crianças com Necessidades Educativas Especiais e os respetivos educadores através da criação e prática artística (bilhetes levantados no dia)

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