Os amores livres na música portuguesa

São múltiplos e bem diversos os sinais da produção discográfica nacional, a aproveitar a quadra mas com todas as possibilidades de "prolongamento" no tempo. Pistas para um Natal de canções, fados, aventuras e "revisões da matéria dada", tudo subordinado a um mesmo propósito: para ouvir alto e bom som
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Para abordar as cantigas, vale sempre a pena ir buscar uma referência - e das boas - que enquadra e contextualiza uma tendência dominante desta fase da música portuguesa. Por isso se ruma a Flor da Idade, original de Chico Buarque de Hollanda, que, a dado passo, conta isto: "Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Dora que amava Carlos amava Dora que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha".

Passe o exagero desta charada de "amores livres", observem-se alguns dos cruzamentos concretizados só neste lote de edições nacionais. Márcia vai buscar António Zambujo, Samuel Úria e Salvador Sobral para duetos. Luísa Sobral também canta a meias com o irmão. António Zambujo chama a si orginais de Luísa Sobral, Miguel Araújo, Márcia, Pedro da Silva Martins (Deolinda), Jorge Benvinda (Virgem Suta) e Aldina Duarte, entre outros. Gimba convoca Ana Bacalhau, Rita Redshoes, António Zambujo, Márcia, Camané, Marisa Liz, Samuel Úria, José Cid, Manuel João Vieira, Mário Mata, Tim e JP Simões. Pedro Abrunhosa recorre a uma "chuva de estrelas", com lugares para Ana Moura e Elisa Rodrigues. O grupo Danças Ocultas convida Carminho. Carminho e Zambujo vêm ambos de discos "brasileiros" - António Carlos Jobim para ela, Chico Buarque para ele. Jorge Benvinda e Nuno Figueiredo (também Virgem Suta), mais João Pedro Coimbra (Mesa) ajudam a revitalizar as canções de Carlos Paião. E os Resistência chegam ao quarto capítulo de reencontros e redescobertas, abordando GNR, Quinta do Bill, Clã, Jorge Palma e mais alguns. Parece o "quem é quem"...

Acontece que não há, em todas estas intrincadas teias, vestígios de "incesto" ou efeitos colaterais de qualquer "consanguinidade". Bem pelo contrário: esta aplicação, a que só por malícia se pode considerar "estratégica", vem reforçar a ideia de que, muitas vezes as mais-valias podem estar ao virar da esquina. E que esta prática dos vasos comunicantes não implica qualquer espécie de renúncia a identidades próprias e a personalidades vincadas. Em resumo, esta política de boas vizinhanças pode integrar as vias para a "solução", sem constituir qualquer problema.

Maturidades e mudanças

Primeiro as senhoras: Márcia dá sinais de amadurecimento, sem perder qualquer fatia de espontaneidade, em Vai e Vem, que continua a basear-se na serenidade inquieta de uma voz que ganha, porventura, novas doçuras, e que continua a exercitar tangentes a vivências que, sendo de todos, precisam de ser "acarinhadas" pelo talento. Com direito a "sobressaltos", como Corredor ou Tempo de Aventura, que ajudam a espraiar o centro de interesses; mas também com os valores acrescentados dos três duetos, escalas de pontaria à perfeição. Quem a viu em palco ao lado de Samuel Úria - em nome de Leonard Cohen -, já podia adivinhar o "namoro" expresso em Emudeci. Nos casos de Salvador Sobral (Pega Em Mim) e António Zambujo (Vai e Vem, a canção), o mínimo que pode dizer-se é que são dois momentos para a melhor história da produção portuguesa de 2018.

O que acontece com Luísa Sobral em Rosa é diferente: trata-se da "radicalização" do processo que já tinha dado ótimos frutos em Luísa, o disco anterior, apontado à simplicidade. Se já conhecíamos a capacidade criativa da compositora e autora, se há muito nos afeiçoámos ao seu jeito de interpretar, temos aqui uma lição do que é "despir" canções sem as envergonhar. Ao invés, com a produção "rústica", chamemos-lhe assim, de Raul Refree (espanhol, muito responsável por grandes momentos de Silvia Pérez Cruz e desse novo fenómeno que é Rosalía), ficamos diante do essencial destes temas de eleição - Dois Namorados, Maria do Mar, Não Sei Ser, Mesma Rua Mesmo Lado - sem dispersões, sem sublinhados desnecessários, sem "gorduras". O encantamento pode ser assim, austero (mas sem austeridades), mas sempre em tangente ao que é belo e que invariavelmente transcende o óbvio. Como no trunfo do "reencontro" da cantora com o irmão, Salvador, numa imaculada Só Um Beijo. Mesmo em downsizing, Luísa Sobral continua a crescer, e a voar alto.

Pedro Abrunhosa e António Zambujo seguem traçados quase antagónicos: o primeiro escreve e compõe todas as canções de Espiritual e reforça-se com meia dúzia de vozes (por ordem de entrada em cena: Ana Moura, a mexicana Lila Downs, a sublime norte-americana Lucinda Williams, a franco-italiana Carla Bruni, Elisa Rodrigues e o brasileiro Ney Matogrosso); o segundo reserva para si apenas três melodias em Do Avesso, recorre aos parceiros atrás citados e mais a João Monge, Mário Laginha, Rodrigo Maranhão, Arnaldo Antunes, Paulo Abreu Lima, Jorge Drexler, Milton Nascimento e Fernando Brandt, mas opta por cantar sozinho ou com coros ocasionais. Abrunhosa volta a demonstrar porque ainda faz sentido falar em "intervenção" - como nos casos transparentes de Amor Em Tempo de Muros ou Porque É Que Não Fui Eu -, acrescentando-lhe o caráter subliminar, como sucede em Vem Ter Comigo Aos Aliados ou em É O Diabo. Vai do acutilante ao apaixonado sem perder o pé, apoiado numa gama de recursos que conhecemos bem (pelo menos) desde 1995. Aflora o rock e a valsa, a balada e o funk, sem que haja cortes na consistência. Joga, sabiamente, mais um trunfo.

Já António Zambujo, consagrado em disco e esmagador em palco, arrisca uma abertura de horizontes, saindo da sua "zona de conforto" em busca de novas (p)aragens. Claro que o denominador comum continua a ser a sua voz privilegiada e uma forma única de interpretar. Mas a presença simultânea de três produtores - Nuno Rafael que vem das cordas, Filipe Melo das teclas e João Moreira dos sopros - garante o acesso a outra dimensão, sem renegar o que quer que seja nas raízes e origens, antes acrescentado outras pulsões, mais notórias ainda com a presença da Sinfonietta de Lisboa. Faça-se um exercício, partindo da audição de uma canção prestes a celebrar o centenário, Amapola, de José Maria Lacalle, que ganha novo "corte e costura" nesta versão. Com criações de primeira água, aquilo que ganhamos é mais espaço e, por outro lado, novas dimensões. Com pérolas como Se Já Não Me Queres, Sem Palavras, Amor de Antigamente, Arrufo ou Madera de Deriva (do uruguaio Jorge Drexler), somos embalados por este registo que ganha foros de jurisprudência: pelo menos dos domínios das artes, pode perfeitamente mexer-se em "equipa que ganha". E ganhar ainda mais.

Em busca de alternativas

Quem está em alta, também, é Carminho, com aquele que é porventura o mais "pessoal" dos seus discos, Maria. A juntar ao património a que o Fado tanto - e tão bem recorre - e a novidades, com realce para as de Joana Espadinha, Carminho decide abrir o livro, escrevendo e compondo de uma forma mais intensa, mais presente, mais categórica do que alguma vez se lhe viu antes. Atente-se na excelência de Desengano, de Estrela (que não é um fado na forma, mas na alma), de A Mulher Vento, de Poeta, de Se Vieres, e facilmente se compreende o que pode valer o crescimento, ainda por cima à vista de todos. E há um brinde, delicioso, na recuperação de Pop Fado, que não parece vindo de há décadas. Ainda no Fado, vale a pena assinalar uma estreia: a de Maria Emília, que marca pontos seguros em Casa de Fado. De recorte clássico, confirma aquilo que o meio já sabia - que há aqui uma voz forte, bem timbrada, com realce para uma dicção sem atropelos e para um timbre de caso sério, a que só falta afirmar-se de uma maneira autónoma para poder chegar à linha da frente.

Um salto em frente, rumo à popularidade e ao reconhecimento, já merecia há muito um grupo de Coimbra chamado Anaquim. Agora, com O Quarto de Anaquim, o crédito do quarteto, em que avulta José Rebola (autor, compositor, cantor), multiplica-se, ao assegurar uma diversidade estética invulgar, a espelhar os múltiplos interesses e devoções que podem - ou devem - assaltar os músicos dos nossos dias. Com uma singularidade: não há passos em falsos, nem verbos de encher. Em The Mamba King, os The Black Mamba mantêm a linha condutora e ganham novos recursos para desfiar nos palcos. Aqui, vale a pena fazer rimar "coerência" com "consistência", num projeto que tem insuspeitos aficionados, a atravessar gerações distintas e gostos que não se adivinhava poderem coabitar. Persistência é aquele que também se atribui ao grupo Danças Ocultas, que continua a subverter aquilo que poderia ser uma "limitação" natural, ao centrar-se num só instrumento (o acordeão diatónico ou concertina), mesmo quadriplicado. Em Dentro Desse Mar, há uma colaboração preciosa para que tudo ganhe céu e cores: a do produtor, e violoncelista, Jacques Morelenbaum. Com três vozes convidadas - Carminho, uma repetente nestas andanças, e as brasileiras Zélia Duncan e Dora Morelenbaum -, este é daqueles discos que vai semeando novas pistas a cada abordagem e que nos levaria a reflectir, se fosse caso disso aqui, sobre a discriminação, nada positiva, que se abate sobre a música instrumental. Vale muito a pena, esta ode marítima.

Regressos e bónus

Quem está de volta é mesmo Gimba, e em boa hora, uma vez que Ponto G reúne passeios inesquecíveis por Lisboa (do Chiado a São Bento, sem esquecer As Praias de Lisboa) declarações de amor (Ana Tão Linda e Mónica), desabafos e viagens (Não è Mania, Não! ou Rumo Ao Sul), tudo naquele tom descomprometido mas nem por isso menos empenhado de um criativo, assim mesmo, que merece toda a atenção. Até porque traz mais: um exercício delicioso de amor pelos parceiros da música, Ruiveloseando, e um autêntico manifesto que seria (ainda) mais ouvido, se não fosse o adormecimento generalizado em que nos encontramos, um espantoso Vá Lá!!, que não tem medo das palavras.

Ventos e Mares prolonga, com evidentes pontos de interesse, a aproximação que há muito tempo nos habituámos a esperar por parte da Resistência, sempre capaz de navegar, dando novos mundos ao mundo, no património da música portuguesa. Ora, quando estão em causa canções como Sete Naves (GNR), Sopro do Coração (Clã), Estrela do Mar, A Gente Vai Continuar (ambas de Jorge Palma) e Zorro (a envolver João Monge, João Gil e Luís Represas), já se sabe que o prazer é garantido. Quanto a Paião, que faz regressar algumas das cantigas mais emblemáticas de um homem que merece continuar a ser escutado e visitado - como já tinha acontecido há uma década, com Tributo a Carlos Paião -, talvez a expectativa, até por se levarem em conta os nomes envolvidos, apontasse para uma menor "reverência" e para o angariar de uma maior dose de transformação. Ainda assim, o encontro com temas como Pó de Arroz, Vinho do Porto (Vinho de Portugal), Cinderela ou Zero A Zero, pode significar, para muitos, uma descoberta.

Para fechar, dois bónus, numa espécie de "extra-concurso". Primeiro, a edição deluxe de Altar, que nos permite perceber como é sempre possível "dar a volta ao texto", até numa obra-prima, através de remisturas, que são sempre novas ideias. Com o disco original, mais um CD de remisturas e um livro que segue os passos do trabalho com Brian Eno - além de um poster para os fãs -, transforma-se num fecho de ciclo mais-que-perfeito para osThe Gift. Além de poder mitigar a asneira de continuar a passar ao lado de uma das proezas nacionais (e não só na música...) mais injustiçadas nos últimos anos. Por fim, mas se calhar no princípio de muito do que atrás se foi escrevendo, está a caixa 50 Anos que recupera a obra integral de José Mário Branco. Como se depreende, está tudo presente, de Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades à recente recolha de Inéditos (1967-1999). Mesmo que julgue conhecer tudo de cor - par coeur, diriam, muito melhor, os franceses -, vai voltar a surpreender-se com os desafios, as soluções, a intensidade e a paixão, a técnica e o sentimento de um "aprendiz de feiticeiro" que nunca deixou de espalhar magia. E sem truques. Aqui, só é mesmo limitado o número de exemplares desta edição especial - o resto continua a não ter fim.

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