Ontem não te vi em Marselha

<em>Em Trânsito</em> estreia-se hoje nas nossas salas. Uma bela e peculiar adaptação do romance de Anna Seghers por Christian Petzold, um dos mais ilustres cineastas alemães da atualidade.
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É possível revisitar o drama histórico sem o reproduzir num filme de época? Em Trânsito, de Christian Petzold, mostra-nos que esse pode ser precisamente o gesto de cinema diferenciador. A saber: mergulhar nos acontecimentos, com todas as referências no lugar, mas sem o aparato de uma recriação histórica.

Foi tomando esta opção audaz que o realizador de Barbara e Phoenix partiu para a adaptação do romance homónimo de Anna Seghers, sobre a Segunda Guerra Mundial - passa-se originalmente em 1942 -, procurando o impulso da sua dinâmica interior e centrando-se na personagem de um foragido para fazer todo um retrato de gente sem rumo na Europa dos dias de hoje.

Eis o cenário: numa Paris invadida pelas forças alemãs, o protagonista (subtilíssimo Franz Rogowski) é incumbido por um amigo de entregar duas cartas a um escritor, mas ao descobrir que o seu destinatário está morto, e ficando na posse dos seus documentos e do último manuscrito, acaba por assumir a identidade deste ao chegar a Marselha, onde fica retido à espera de partir para o México com o visto do compatriota... Há, no entanto, uma mulher enigmática (Paula Beer, numa vaporosa presença) que, ao cruzar-se repetidas vezes com ele nessa cidade portuária, parece procurar no seu rosto o rosto de outra pessoa. Pois bem, ela é a jovem e elegante esposa do falecido escritor, por quem o acidental usurpador não conseguirá evitar uma atração silenciosa.

Orientado por este quadro humano, Petzold trabalha a textura do melodrama contemporâneo com uma tremenda suavidade literária (assente na voz off cuja identidade se revela no final). Porventura estamos perante um dos poucos cineastas capazes de o fazer através de uma dialética própria, infalível, olhando as personagens como quem capta as suas cicatrizes escondidas. Neste caso, como quem as observa numa complexa coreografia urbana, entre contactos fugidios e trocas de olhares - no fundo, aí reside a noção de movimento que faz plena justiça ao título, convertendo este filme numa verdadeira encenação de corpos que se procuram e desencontram.

Será por essa razão que, quando foi apresentado no último Festival de Berlim, veio ao de cima, entre a crítica internacional, a memória de Casablanca (1942). Entenda-se: este alemão sabe fazer do classicismo uma linguagem sem tempo, produzindo uma atmosfera levemente romântica em que as emoções são filtradas pela beleza da escrita visual.

Em Trânsito apresenta-nos ainda outras breves histórias, sussurra-nos várias expressões de desamparo, e todas elas surgem aqui como qualquer coisa "de passagem", com toda a violência que isso pode conter. Porque é de gente perdida (de uma Europa perdida?) - ou, se quisermos, de uma inversão da narrativa dos refugiados de hoje - que Petzold nos fala, partindo dos fantasmas da sua Alemanha. Esses que já conhecíamos do filme anterior, o fabuloso Phoenix (2014), também a retratar um caso da Segunda Guerra em que a questão da identidade é uma fratura tão íntima quanto social.

Para todos os efeitos, Em Trânsito é muito mais do que uma obra que reverbera uma questão política, apresentando o passado em justaposição com o presente. A sua essência está na mestria de Christian Petzold que, já sem a colaboração nos argumentos do seu mentor Harun Farocki (1944-2014), mantém um primoroso requinte dramático. Esse que se testemunha, por exemplo, numa generosa cena em que Franz Rogowski canta uma canção de embalar infantil, recordando a sua mãe a cantá-la, e parecendo de repente levar o filme para outro lugar distante. É também de quebras como esta (nostálgicas ou não) que se compõe o encanto melancólico de Em Trânsito, obra que confirma Petzold como um dos grandes cineastas germânicos da sua geração.

**** Muito bom

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