Bradley Cooper e Lady Gaga em drama e melodrama de Hollywood

É a quarta vez que o cinema americano conta esta história: <em>Assim Nasce uma Estrela </em>prova que é possível recriar memórias, agora através de um par tão inesperado como brilhante: Bradley Cooper e Lady Gaga.
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Não é todos os dias que nos deparamos com um ator famoso, capaz de arriscar num filme que parece contrariar a sua mais forte imagem pública e, mais do que isso, assumindo (em estreia pessoal absoluta!) a realização desse filme.

Acontece agora com Bradley Cooper: através de Assim Nasce uma Estrela, ele consegue provar que sabe construir uma narrativa de serena consistência clássica. E como a sua personagem é uma vedeta musical, ficamos também a saber que ele sabe cantar. Mais do que isso: promovendo outra estreia, a de Lady Gaga como atriz, descobrimos também que a cantora de Born This Way ou Sexxx Dreams é uma talentosa intérprete dramática.

Não era simples, de facto, trabalhar no coração de Hollywood e contar a história de uma mulher que, como diz o título, se torna uma estrela, para tal contando com um veterano do espetáculo, fortemente dependente do álcool, que por ela se apaixona. Convenhamos que num panorama em que os super-heróis (Marvel & DC Comics) detêm todos os poderes de produção, recuperar esta história clássica estava longe de ser uma opção "natural". Porque se trata, realmente, de uma recuperação: Assim Nasce uma Estrela retoma uma linha de argumento já experimentada em três épocas bem diferentes, em títulos produzidos em 1937, 1954 e 1976.

De que se trata, então? Um filme musical? Em boa verdade, não. Trata-se, isso sim, de um filme em que as canções surgem como elementos fundamentais da relação de conhecimento, trabalho e amor que se estabelece entre Jackson Maine (Cooper) e Ally (Gaga): ele, um cantor consagrado que vai escondendo do público o seu alcoolismo; ela, uma cantora e compositora que sobrevive como empregada de um restaurante, cantando por vezes num bar de travestis... Do seu encontro casual nasce um genuíno melodrama.

Melodrama? A palavra tornou-se suspeita para muitos espectadores, em grande parte por efeito de uma cultura audiovisual (de raiz televisiva e novelesca) que ignora a pluralidade histórica do cinema. De facto, na sua raiz mais pura, o melodrama é um género sem nada de pitoresco ou superficial: no seu seio deparamos com a complexidade das relações humanas e, mais do que isso, com a (im)possibilidade de cada ser cumprir aquilo que imagina ser o seu destino. Tudo isso, muitas vezes, precisamente, envolvido com as matérias musicais.

É o que aqui acontece. Cooper teve o cuidado de rodar as cenas com canções em ambientes tão realistas quanto possível (incluindo o festival inglês de Glastonbury e o Shrine Auditorium, em Los Angeles). Mais do que isso: o elaborado trabalho de montagem reforça o facto de tais canções não "interromperem" a história de Jackson e Ally, funcionando antes como momentos que reforçam, sublinham ou transfiguram os seus afetos e emoções - nesse aspeto, o tema Shallow surge exemplarmente encenado.

Que podemos esperar do impacto de Assim Nasce uma Estrela? Será que voltaremos a especular sobre o possível "retorno" do musical, mesmo não esquecendo que estamos antes perante um drama com música?

Não creio que essa seja a questão mais pertinente. Acima de tudo, a feliz aliança artística Bradley Cooper/Lady Gaga vem provar que é possível fazer filmes com raízes em modelos do imaginário popular, sem ceder às facilidades de uma produção instalada nas rotinas de géneros dependentes da banal ostentação de efeitos especiais. Nesta perspetiva, Assim Nasce Uma Estrela é um digno herdeiro das memórias dos seus antepassados - trata-se, afinal, de contar uma "velha" história, repensando-a para o presente.

Assim Nasce Uma Estrela em versões anteriores

Nasceu Uma Estrela (1937) - Com produção de David O. Selznick (que, por esta altura, já trabalhava no projeto de E Tudo o Vento Levou, a ser lançado em 1939) e realização de William A. Wellman, este é um projeto pioneiro na consagração comercial das imagens em Technicolor - valeu a W. Howard Greene um Óscar honorário pelo seu contributo como diretor de fotografia e foi mesmo promovido como "o primeiro filme em Technicolor" da atriz Janet Gaynor. Contracenando com Fredrich March, ela encarna os sonhos, ilusões e desilusões de uma ascensão fulgurante: era Hollywood a ver-se ao espelho, com ternura e crueldade.

Assim Nasce Uma Estrela (1954) - Uma das obras-primas da produção de Hollywood ao longo da década de 50, assinada por um dos mestres absolutos da arte do melodrama: George Cukor. Com Judy Garland e James Mason, a história da atriz em ascensão e do seu mentor alcoólico adquire, definitivamente, a dimensão de uma tragédia sobre o amor e a sua infinita vulnerabilidade. Foi também um dos primeiros títulos a saber utilizar com admirável elegância os recursos do novo "formato largo" (CinemaScope) que tinha chegado às salas em filmes de 1953.

Nasce Uma Estrela (1976) - Realizada por Frank Pierson, foi esta versão que serviu de inspiração direta ao argumento do novo filme de Bradley Cooper. Os cenários já não são de Hollywood, mas sim do mundo da música rock, com um veterano algo decadente a apaixonar-se por uma cantora em ascensão. Barbra Streisand e Kris Kristofferson interpretam o par central, ambos em momentos altos das respectivas carreiras. Para Streisand, em particular, tratava-se de uma nova via musical, bem diferente da que a impusera no cinema, através de Funny Girl (1968) e Hello, Dolly! (1969).

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