A capa de As Cinco Grandes Revoluções da História de Portugal tem várias figuras da História de Portugal, no entanto quando se observa o retrato de Salazar nota-se bem que é maltratado: tem o vidro partido e está tombado. Pergunta-se ao historiador André Canhoto Costa se há uma intenção e este responde que "sim, claro". Justifica: "É a figura mais controversa e simboliza um problema que julgo, em parte, mal resolvido. Salazar continua a ser em muitos casos, uma resposta fácil. Preocupa-me o tipo de tendências - e convicções - que gerou e pode gerar no futuro este tipo de solução política.".Para o autor de uma investigação histórica muito bem documentada e sedutora, tanto para leitores eruditos como desejosos de perceberem cinco dos momentos fundamentais da história do país, o que se passa sobre o legado de Salazar e o seu entendimento académico é fácil de explicar: "Quando vejo artigos publicados em revistas académicas, redigidos por professores respeitáveis, reabilitando de forma disparatada o esforço de alfabetização do Estado Novo - em comparação com a República (ignorando o peso do apoio da Igreja ou o peso cumulativo da alfabetização dos pais no número de palavras apreendidas por uma criança com 4 anos); quando vejo como se reclama objetividade para problemas que têm uma complexidade subjetiva evidente, invocando argumentos de autoridade - embrulhados em péssima matemática - ficamos na dúvida se é apenas desespero metodológico, desorientação intelectual ou ignorância histórica. Não quero ser alarmista mas é um sinal preocupante.".Em poucas palavras, o historiador é bastante explícito quanto às alegadas cinco grandes revoluções da História de Portugal: "Oferecem o relato de um espetacular falhanço." Informa: "Sem dinheiro, não se fazem revoluções". Quanto ao presente, alerta: "Diria que podemos conhecer sobressaltos em breve, dado o aumento da exigência dos portugueses e um certo investimento em educação que pode revelar-se incapaz de produzir resultados face às expectativas criadas. A proliferação de advogados também não costuma ser um bom sintoma.".Logo à página 26 coloca a pergunta que vale as 500 páginas do livro. Terá alguma vez existido uma Revolução em Portugal?.Embora possa ser arriscado, podemos simplificar e responder «não». Claro que o debate sobre o conceito de "revolução" daria para vários volumes de 500 páginas, incluindo a ideia seiscentista (regressar ao ponto de origem, redescobrir a rota inicial), mas quis propositadamente fugir à filologia arqueológica. Com esta resposta, não pretendo desvalorizar o 25 de Abril de 1974 mas reagir um pouco contra a tendência congratulatória, memorial e comemorativa. Também não me parece uma grande novidade reconhecer que as Revoluções de 1820-1834 ou a de 1910 ou a de 1974 foram travadas muito rapidamente, e não estou sequer a valorizar agora se isso foi bom ou mau. Mas em termos comparativos e se tomarmos como exemplo só as Revoluções burguesas (nem precisamos de ir ao inflamável tema da Revolução Russa), uma Revolução passa pela decapitação do rei ou soberano, e pela eliminação de uma quantidade considerável de pessoas com poder e estatuto. Não quero fazer a apologia da violência, nem julgo que isso fosse possível em 1974 (ou sequer benéfico). Quero apenas destacar a baixa conflitualidade social - para não dizer o conformismo - e a escassa mobilidade da sociedade portuguesa. Hoje há alguma tendência para sublinhar os enormes ganhos materiais - que subscrevo - mas quanto se deveu à Revolução de Abril e quanto se deveu às injeções monumentais de dinheiro europeu?.Considera que Portugal nunca teve uma revolução suficientemente profunda. A que se deve?.A questão da profundidade é muito interessante e recupera a metáfora topográfica, à qual é sempre difícil fugir. Como não nasce um Marc Bloch todas as décadas, temos imensa dificuldade em falar de "sociedades", um fenómeno que compreendemos muito mal, apesar das toneladas de certezas despejadas pelas ciências sociais. Tento responder a isso no Epílogo do livro, com aqueles 5 pontos sobre os traços culturais mais profundos da história portuguesa: escassa participação das populações em assembleias deliberativas, Universidades muito exclusivas, insignificante difusão da imprensa e da alfabetização, dificuldade em valorizar a independência económica e a tendência para a centralização religiosa. Isto sintetiza causas e oferece uma pista para as consequências dessa ausência de rutura. É um fenómeno de tendência circular ou exponencial, o que é muito típico dos grupos humanos..Refere que "as cinco grande revoluções da História de Portugal oferecem o relato de um espetacular falhanço". Este trabalho é a crónica dessas oportunidades perdidas?.Sem dúvida. É sobretudo a crónica desses hábitos profundos. Dos comportamentos herdados na cultura. É a história de um povo no esforço de construir um sistema nervoso central: um parlamento. O livro tenta falar de algumas tendências de longo prazo. Padecemos de uma desconfiança congénita perante a discussão pública com argumentos lógicos (gostamos de gritos e ordens, de mão firme e estamos sempre prontos a ridicularizar o chamado diálogo). Temos alguma tendência para associar o interesse comercial a uma coisa negativa, mantemos com persistência a ideia de que os livros são perda de tempo (contraste-se o fascínio embasbacado com as novas tecnologias por comparação com a fulgurante cultura de edição em livro, presente, ainda com enorme força, nos mais avançados setores norte-americanos da tecnologia e nas melhores Universidades inglesas e norte-americanas)..Esta investigação alterou-lhe a visão que se tem dos momentos alegadamente revolucionários da nossa história?.Em parte sim. Claro que me baseei também, além da investigação de arquivo acumulada, em muita da historiografia conhecida e muita da qual está sintetizada no livro, não foi uma completa novidade. Mas destacaria talvez o peso do obscurantismo na nossa História, o gosto meridional pelo segredo, além da tendência para desvalorizar a igualdade e a progressão social. Do conjunto resulta uma certa persistência trágica - quase heroica - de muitos dos portugueses menos favorecidos. Neste sentido, o livro é um pouco neo-romântico - talvez fosse muito otimista para a sensibilidade de um Oliveira Martins, por exemplo - mas gosto de pensar que o obtuso Herculano e o elegante Garrett encontrariam nele (no livro) muitas coisas agradáveis..Porque excluiu outros momentos que os historiadores apelidam de revoluções?.Considero que estes são os cincos momentos que mais perto estiveram de alterar a nossa trajetória cultural. Creio mesmo que o 25 de Abril a terá começado a alterar e por isso suscita ainda tanto fervor. Embora os resultados só agora se façam notar em toda a sua profundidade e com o contributo europeu que já destaquei..O seu registo é diferente do habitual, com muitos subcapítulos e histórias da História. É para seduzir leitores ou só assim se percebe o processo histórico?.Não o faço intencionalmente para seduzir os leitores. Acredito que a explicação em história - e não sou o primeiro a dizê-lo, como é óbvio - mesmo quando recorre a modelos estatísticos, acaba sempre por assentar sobre uma estrutura narrativa básica: seja a comédia, a tragédia ou a farsa, ou mesmo a analogia, em termos mais genéricos. A mecânica da ação e a própria evolução das ações das personagens - ou dos grupos - condicionam a estrutura. Estou a ser um pouco abstrato mas admito que esses capítulos curtos também decorram de uma certa vertigem curiosa. O que me leva a tocar em muitos pontos, que têm necessariamente de ser curtos, para evitar as 3000 páginas, e influenciado pelo programa estético de Italo Calvino, acabo por querer ajoelhar diante da velocidade e da leveza..Tal como os títulos de cada capítulo, por exemplo glosando filmes. Quer demarcar-se dos historiadores tradicionais?.Isso acontece devido às minhas convicções sobre o poder explicativo da metáfora. Mas também tenho algum prazer, confesso, em demarcar-me dos historiadores tradicionais..Refere os custos de uma revolução. Por norma só contabilizam os prejuízos causados pelos golpes mas, pelos vistos, nem sempre foi essa a realidade?.Sem dinheiro, não se fazem revoluções, como tragicamente sabem todos os países de Terceiro Mundo. Em 1383-1385, a solução passou por capturar barcos italianos com cargas valiosas e pelo empenhamento das fortunas pessoais de alguns aristocratas, numa época em que era fácil dar ordens sobre cunhagem de moeda ou reduzir a quantidade de metal precioso por unidade. Mas por exemplo, a República em 1910 precisou de um esforço financeiro significativo. Isso explica também em grande medida a durabilidade do Estado Novo. Não havia dinheiro para financiar uma luta armada da oposição. Daí que a tal pluralidade e a independência económica sejam importantes na criação de um regime de tipo plural ou burguês. Depois podemos entrar na interminável e por vezes dolorosa discussão sobre os aspetos incontroláveis de uma democracia fundada sobre o capital e a liberdade económica..Afirma que em Portugal "Fazer uma revolução nunca foi um desporto muito popular" porque era precisa uma "licença" dos parceiros internacionais. Foi sempre assim?.Sim, foi uma tendência que se foi agravando devido à sedentarização cultural. Devido à centralização precoce. Muitos historiadores vão amaldiçoar-me até à 5ª geração mas parece-me indiscutível que uma certa aliança entre rei, aristocracia e burocracia régia, elite comercial e rendas coloniais estabilizou o regime político português em torno do «Estado», um modelo que vem dos fins da idade média e que praticamente apenas caiu em 1974..O Portugal moderno deriva diretamente das revoluções de 1820 ou não concorda que se dê nessa altura o corte mais radical com o passado?.Existiram cortes, claro, em todos estes momentos. E a revolução de 1820 apesar de tudo foi um soluço com alguma importância. Lá está, sobretudo devido à perda do Brasil mas também ao trágico impacto das invasões napoleónicas. A dificuldade em cortar com o passado, prende-se com a preponderância das elites, uma discussão difícil e que dá normalmente azo a interpretações excessivas. Os sociólogos sabem que a substituição da luta de classes pela ideia de elite é bastante insuficiente. É difícil caracterizar uma elite e sua função num sistema social. E uma coisa é a função, outra, os protagonistas nessa função. Os protagonistas das elites criadas em 1640 e engordadas pelo ciclo do ouro, não ultrapassaram o tumulto de 1820-1834 tal como depois da República de 1910, ocorreu uma normal reconfiguração de algumas das principais famílias. Os protagonistas não foram os mesmos. As alterações do modo de produção (sim, o vocabulário é marxista) são também alterações no modo de produção da autoridade ou da legitimidade. E é precisamente uma grande tendência para a imobilidade cultural - em comparação com outras zonas da Europa - que explica uma certa especificidade portuguesa. Quantos de nós, mesmo na minha geração, não passaram o verão em aldeias cujo modo de vida era praticamente o mesmo de há 5 séculos? Quantos livros existiam na casa dos nossos avós? Não é a linguagem da Quaresma medieval familiar a muitos de nós? Enfim, podíamos continuar indefinidamente..A Revolução de Abril é a mais moderna. Foi mais difícil descrevê-la do que as anteriores?.Foi, devido à autocensura, que é em parte um resultado deste caldo cultural que estou a descrever, embora não me possa isentar de responsabilidades. Temos imenso medo de dizer coisas desagradáveis em público e dando a cara, o que em parte até é uma virtude apreciável. Implico com aquela ideia da frontalidade. Mas por outro lado, a sonsice também é bastante irritante. Claro que sendo o 25 de abril a Revolução mais recente, obriga a um redobrado esforço na análise da Retórica. As palavras têm muita força. Acordam fantasmas terríveis que nos tolhem o exercício da razão..Não poupa os heróis desta Revolução de Abril: a guerra de Otelo no ar condicionado e a de Salgueiro Maia com os nervos em franja após um ano no terreno. Não foram o que esperava?.Tentei ser o mais crítico possível na avaliação política das revoluções em todas as épocas. E combater uma certa tendência para o determinismo da revolução de abril. As revoluções são imprevisíveis também porque as estatísticas gerais - que ajudam os historiadores da economia a controlar a ansiedade - não mostram a aleatoriedade e o papel do acaso na história. Mas reconheço que as liberdades literárias, por vezes, geram ambiguidades, o que é uma virtude e um defeito. Nesse caso concreto, a ideia até era a contrária. Mostrar como a violência da guerra colonial, o sentido de injustiça perante a hierarquia militar, a irracionalidade das decisões operacionais, ajudou a radicalizar esses oficiais - e outros - contra o regime. Salgueiro Maia por exemplo, nas entrevistas que deu e nos livros que recolheram impressões biográficas, apresenta esse sentido de fúria perante a enorme irracionalidade da guerra. E Maia era um homem que chegou a África com uma certa ilusão de contribuir para o progresso dos povos africanos. Quanto ao ar condicionado, também aí se fala de uma crítica feita por Otelo a quem apenas viveu a guerra a partir do conforto do ar condicionado..As fontes que têm feito a narrativa do 25 de Abril são de confiança ou encontrou surpresas em relação à história já escrita?.Há muitos artigos publicados por especialista que infelizmente não chegam ao grande público e que fazem um confronto muito pormenorizado das fontes, por exemplo, em relação ao 11 de Março ou ao 25 de Novembro de 1975. Ainda que possam por vezes ser atravessados por convicções políticas muito vincadas - e quem as não tem? - permitem hoje uma crítica muito mais informada sobre a Revolução de Abril. Claro que a leitura direta das fontes sem o auxílio desta literatura pode ser bastante arriscada..Refere a "despolitização dos capitães". Não é uma situação normal em quem faz uma revolução?.Nem sempre. Acredito genuinamente que para muitos dos capitães a filosofia política e os debates sobre a política económica causavam algum enfado. Isso, como em tudo, trouxe alguns benefícios. Uma certa ingenuidade que permitiu evitar a guerra civil. Se essa guerra teria sido mais clarificadora e gerado benefícios a longo prazo? Para quem vive obcecado com a eficiência, esta pergunta pode ter sentido. Para quem tem uma vaga ideia das quantidades de dor e irracionalidade gerada pela guerra, julgo que a resposta é simples..Descreve Portugal como um "oásis de pacifismo" que gerou "um país apático e pobre" e culpa as constantes elites. Dessa situação nunca nos veremos livres?.Culpo as elites na medida em que têm historicamente, como diria Gogol, mais recursos. Mas culpa é um conceito metafísico. As "elites" são incompreensíveis sem o fundo cultural de onde ascendem..Na sua biografia inclui duas particularidades: "Estudou no Liceu de Oeiras, onde frequentou a confortável biblioteca" e "Gosta de futebol e de livros". Uma provocaçãozinha?.Sim, embora o futebol se esteja a tornar uma atividade bastante irrespirável, em parte devido às doses de metafísica introduzida pelos profissionais do comentário, e à escassez na economia do livro, que despeja nos departamentos de comunicação dos clubes desempregados das Humanidades..Pelo que vê da situação nacional, há sinais de que um dia destes teremos uma nova revolução ou é prática do passado?.Eu diria que podemos conhecer sobressaltos em breve, dado o aumento da exigência dos portugueses e um certo investimento em educação que pode revelar-se incapaz de produzir resultados face às expectativas criadas. A proliferação de advogados também não costuma ser um bom sintoma. Suspeito que em caso de disciplina das avenças públicas a grandes escritórios de advogados, o nível de retórica inflamada contra o governo irá necessariamente subir. Nesse aspeto - com todos os risos que isto possa gerar - e enquanto não adotamos o sorteio dos mandatos de deputados entre a população (é a minha proposta, sem ironia) resta-nos trabalhar para que, com as tecnologias à disposição, se passe a utilizar a capacidade mental dos cidadãos para tomar decisões mais informadas e legítimas. E nem o Brexit dever servir para lateralizar esta discussão. Ou isso, ou como diria o Oliveira Martins, as populações furiosas vão acabar por se fazer ouvir, mas desta vez com o pau e o chuço na mão..As Cinco Grandes Revoluções da História de Portugal.André Canhoto Costa.Editora Saída de Emergência.493 páginas