Lobo Antunes: "A crítica em Portugal não me perdoava eu ser bonito"

Um sábado a recordar 40 anos de vida literária de António Lobo Antunes. Bernard-Henry Lévy veio de Marraquexe e o Presidente da República concedeu, inesperadamente, a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade ao escritor.
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O que iria dizer durante uma hora o filósofo e polemista Bernard-Henri Lévy sobre António Lobo Antunes era a grande curiosidade da primeira parte do colóquio dedicado ao escritor, promovido pela Fundação Gulbenkian neste sábado. Assunto não faltava, afinal 40 anos de vida literária dão milhares de páginas e ângulos, mas Lévy não se considera mais do que um leitor de Lobo Antunes e havia muitos especialistas num auditório repleto de espectadores. Sendo um animal acostumado a dominar plateias, Bernard-Henri Lévy confirmou essa habilidade e durante dezenas de minutos divagou sobre a obra e o escritor e saiu do palco perante uma salva de palmas sinceras e de espanto pelo que desbravou.

Lévy - a partir daqui BHL - começou por confessar-se: "Há poucos escritores vivos que me impressionem tanto como Lobo Antunes." Antes da justificação afirma que o antigo editor francês de António Lobo Antunes - a partir daqui ALA -, Christian Bourgois, lhe dissera há muitos anos que "precisava de ler a tradução de Os Cus de Judas de um dos escritores maiores que publicava". Conclusão de BHL após ler o romance: "Era uma das aventuras singulares do nosso tempo."

Então, após garantir que era fã, que lera várias traduções, que comprovou, pelo menos, dizendo os títulos de vários livros - "ainda ontem vim a reler o Manual dos Inquisidores" -, recordou uma antiga entrevista de ALA em que este fazia três recomendações aos que o quisessem ler: "Ele explicava aos leitores como é que poderiam entrar na sua obra assim"...

BHL recordou a primeira recomendação de ALA: "Leiam-me com se eu fosse um músico porque a minha academia não é de escritores. O ofício de escrita aprendi-o num programa de televisão com um ornitólogo que decompunha o canto dos pássaros ao passar mais devagar as gravações que fazia e assim poder ouvir as variações desses cantos." Foi deste modo, acrescentou BHL, que ALA "compreendeu que os seus verdadeiros mestres eram Beethoven, Brahms, Mahler e Charlie Parker, e que me obrigou a ler de outra forma os seus romances".

Segue com a segunda recomendação de ALA aos leitores: "Prestem atenção ao que leem como se a regra do ofício do escritor entrasse pela porta da pontuação." BHL esmiuça: "Céline inventou o ponto de exclamação, Proust dizia que Flaubert mudara o destino da humanidade por alterar o início das frases e ALA fez revoluções, como introduzir maiúsculas no meio das frases, acrescentar conteúdo entre parêntesis e trabalhando sobre o branco entre e no interior das palavras. Isso era novo e fazia o texto respirar como nenhum outro."

A terceira recomendação era: "Dispersar o leitor em vez de o encaminhar, pois ALA faz um esforço para o desarmar. Quer que ele deixe à entrada do livro tudo o que sabe porque os seus livros precisam de ser apanhados como o corpo é contagiado por um micróbio. Só baixando as defesas imunitárias se pode acolher o furacão dos seus livros."

Aí, BHL recordou o pedido do papa João Paulo II para que os fiéis confiassem nele e disse: "António, tu és o único escritor que conheço a ter um toque papal quando pede aos leitores 'tenham confiança em mim'." E, sem interromper a palestra, passa para o que torna a obra de ALA diferente da de outros escritores, como James Joyce ou Virginia Woolf: "A novidade é como trata a questão do tempo, tema que todos os grandes trabalharam: Balzac ou Proust, por exemplo. Mas ALA distingue-se do trabalho de ambos porque ao colocar o tempo fá-lo através de uma orquestra de personagens que oferecem a memória. O tempo de ALA é um em que o passado, o presente e o futuro não aceitam ser estanques e misturam-se - como era a realidade portuguesa nos tempos a seguir à Revolução de 1974, onde tudo estava em simultâneo. ALA faz na sua obra a paródia e o pastiche de figuras da história portuguesa como se fosse um descendente de Homero a fazer um relato à Monty Python".

Ultrapassadas as recomendações e a sua análise à diferença da obra de ALA para com os seus antecessores e contemporâneos, BHL decide meter a colher na interpretação da escrita do autor português e volta a socorrer-se de Joyce e de Woolf: "Em ALA há o monólogo interior e a polifonia, que vem de Joyce ou de Virginia Woolf; no primeiro, com a existência de um falar em permanência e na segunda o fluxo da consciência. Mas há uma diferença, quando se leem os teus romances percebe-se que existem vozes nos teus monólogos que flutuam e não pertencem a ninguém - e isso parecia-me impensável. Há até várias vozes na mesma palavra e se quisermos definir a tua voz só pode ser da seguinte maneira: há um Tejo de palavras onde nelas se misturam os dias, as vozes e também as pessoas e as coisas."

A finalizar, BHL decide questionar o tema principal da obra do escritor: a guerra. Resume em três letras o tema: mal. E exige que ALA se pronuncie de forma doutrinária e teológica sobre o horror e a estupidez da guerra: "A grandeza militar é uma merda. A guerra é o momento limite da humanidade e onde tudo se desfaz - ALA viu isso em Angola e mostra-o nos seus livros." BHL insiste: "Onde está o mal na obra e como é que ALA o interpreta?

Quase a chegar ao fim da palestra, Bernard-Henri Lévy não resiste a elogiar à francesa António Lobo Antunes: "Depois de ser incluído na Plêiade - onde poucos autores vivos estão -, o que peço para este escritor é o Nobel da Literatura!" À francesa, porque a Plêiade e o seu reconhecimento em França não é para qualquer um...

O retrato presidencial de Lobo Antunes

Foi Marcelo Rebelo de Sousa quem encerrou a evocação dos 40 anos de vida literária do escritor. O Presidente da República entrou de braço dado com o escritor e logo se ouviu uma ovação pouco habitual neste género de colóquios intelectuais. Começou por dizer que o seu discurso tinha sido destruído pela intervenção do escritor e que tudo o que dissesse seria de uma banalidade terrível. Por isso, decidiu comentar o que António Lobo Antunes dissera, como a importância da linhagem de que descende e a importância dos irmãos, a sociedade e a crítica conservadora dos tempos em que iniciara a carreira e a forma como Portugal interiorizou a Guerra Colonial: "O António veio dizer o que se passou e chocou muitos. Não era um ajuste de contas mas um reajuste."

Para o Presidente, a sociedade foi mudando e a obra passou a ser consensual: "Imagino que isso o irritasse bastante." Em seguida, comentou as crónicas do escritor e o que elas permitem descobrir sobre a sua infância, e até ofereceu um assunto para um texto ao escritor. E não pôde evitar falar do Prémio Nobel da Literatura por considerar que não é preciso esperar notícias dessas de uma capital nórdica, pois "o António já recebeu todos os prémios possíveis e até está na Plêiade. Não precisa do Nobel!" E rematou que só poderia atribuir lhe a Grã-Cruz da Ordem da liberdade: "E é isso que eu passo a fazer."

Antes de o Presidente encerrar a sessão, António lobo Antunes mostrara-se tão emocionado como irreverente na sua intervenção: "40 anos desde a publicação. 40 anos! Parece impossível. Quando olho ao espelho o que vejo intriga-me sempre. O cabelo cinzento, a cara marcada não é minha. Não sou um senhor com um coração jovem mas um miúdo em que o envelope se gastou. Um miúdo que passava o tempo a escrever, a minha vida foi sempre isso. Tinha 5, 6 anos e já tinha uma obra impressionante. As minhas primeiras histórias eram sobre a morte porque o meu avô recebia o Diário de Notícias e começava pela necrologia. E ria-se dos que morriam tão jovens. Então, continuei a escrever na faculdade mas era o meu irmão João que me dava os apontamentos e fazia com que eu passasse de ano..."

Depois de recordar a morte deste irmão, de referir casos de cobardia em África, de elogiar os militares combatentes... Depois desse momento triste, Lobo Antunes divertiu a plateia e o Presidente com umas quadras picarescas... Recordou a ida a Pádua com o avô, que ia pagar uma promessa por o neto ter sobrevivido à meningite... Voltou às memórias com histórias à José Vilhena e a plateia riu-se muito enquanto o Presidente olhava e sorria timidamente... "Então, quando tinha 30 anos tinha um livro que o meu amigo Daniel Sampaio levou a uma editora, um livro que era considerado a pior merda de sempre enquanto nos Estados Unidos falavam muito bem. O João Gaspar Simões dizia que a tradução era melhor do que o original... Quando o vi uma vez, disse-lhe: seu filho da puta... A crítica em Portugal não me perdoava eu ser bonito, não perdoam a beleza nem a inteligência..." Recordou ainda a sua amizade com anteriores Presidentes da República, Ramalho Eanes e Mário Soares, antes de agradecer aos presentes, que se levantaram para o aplaudir após a intervenção.

Testemunhos sobre a vida toda do escritor

A parte da manhã foi dominada pela participação de Bernard-Henri Lévy, mas os três testemunhos sobre o escritor não ficaram atrás no que respeita à emoção dos presentes após a introdução de Guilherme d'Oliveira Martins.

O amigo desde há muito, e também psiquiatra, Daniel Sampaio situou o Portugal em que António Lobo Antunes se iniciou na escrita: "Em 1979, Portugal estava em transição política e Ramalho Eanes - presente na primeira fila - era o Presidente da República, Maria de Lourdes Pintasilgo a primeira-ministra, inaugurava-se o canal 2 da RTP, o filme Apocalypse Now chegava aos cinemas e a canção que vencera o Festival era Sobe Sobe, Balão Sobe. Foi nesse tempo que um escritor que escrevia desde criança publicou dois livros, sobre os quais quase nenhum dos autores reconhecidos de então disse uma palavra - à exceção de Agustina e de Cardoso Pires. Era um tempo em que todos esperávamos os grandes romances que estariam na gaveta e a democracia ainda não tinha acabado com os romances neorrealistas e existencialistas. Ele apareceu-me com um manuscrito e eu levei o livro a três editoras - só a Vega publicou. O que se passou a seguir é difícil de descrever: o meio literário ficou em silêncio e, posteriormente, eram comentados como se fossem uma ofensa, mas todos o queriam ler. Em Memória de Elefante já estavam algumas das linhas de força do que hoje ele veio a escrever mas, em 1979, esses foram os dois livros que agitaram as consciências da burguesia de então."

Dinu Flamand deu o testemunho seguinte, recordando os tempos em que António Lobo Antunes o ajudou a viver fora da Roménia, ora recebendo-o na sua casa - "foi a primeira vez em que vi um escritor profissional a trabalhar", ora a facilitar-lhe a vida fora do país de origem - "lembro-me de ter lido Fado Alexandrino e imaginar o que seria um livro destes na Roménia!" No fim, após vários relatos, agradeceu ao escritor "ter-lhe salvado a vida".

Nuno Lobo Antunes, o quinto irmão do autor, fechou a manhã. Com um rol de "críticas" a António Lobo Antunes, divertiu a plateia, após confessar que só estava ali porque os seus irmãos mais velhos morreram. Revelou que lhe tinham pedido para explicar o que se sentira na família quando Lobo Antunes se revelou para a escrita. Recordou vários episódios da relação com o irmão: "Lembro-me de o ver escrever, mas o que mais estranhava era que usasse uma caveira como cinzeiro." Recordou quando recebeu um aerograma do irmão dirigido a si: "Foi como se o rei António me tivesse armado cavaleiro." No fim, listou os momentos mais gratos da sua infância e acusou o irmão de "ser um ladrão": "Roubou para os seus livros as frases da família, tudo o que eram as minhas experiências e todo o meu passado. Deixei de ter histórias para contar e cada frase que leio nos seus livros esvazia-me do que eu fui."

Da parte da tarde, vários especialistas analisaram em duas sessões a obra de António Lobo Antunes e o escritor leu trechos do romance Os Cus de Judas, após o que a presidente da Fundação Gulbenkian deu início ao fecho da cerimónia evocativa dos 40 anos de vida literária do escritor.

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