Maria e Vitória. Duas rainhas, uma amizade luso-britânica

Chamadas a assumir as coroas dos seus países numa sociedade que dava pouco crédito às mulheres, Dona Maria II de Portugal e Vitória de Inglaterra trocaram correspondência em que discutiam as particularidades do seu sexo
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Nasceram com semanas de intervalo, mas, à parte a condição inata de princesas reais, nada pareciam ter em comum. No entanto, partilharam confidências de grande intimidade como se irmãs tivessem sido e não se tivessem encontrado pessoalmente apenas duas vezes, quando eram apenas duas meninas à espera de cingir as respetivas coroas.

Falamos de Dona Maria II de Portugal e da rainha Vitória de Inglaterra, cujos bicentenários de nascimento se celebram este ano. Maria da Glória, filha de Dom Pedro IV de Portugal e I do Brasil, trazia às cortes europeias o à vontade tropical do Rio de Janeiro onde nascera a 4 de Abril de 1819, mas também a fragilidade da sua condição de pequena rainha aguardando que, no seu reino, que ela não conhecia, terminasse uma guerra civil que opunha o seu próprio pai ao irmão deste, Dom Miguel.

Foi nesta inquietante situação que Vitória, princesa herdeira de Inglaterra, nascida em Londres a 24 de Maio de 1819, a foi encontrar em Portsmouth, acompanhada pela madrasta, Amélia de Leuchtenberg, e uma pequena comitiva errante.

No diário ilustrado com desenhos seus que manteve durante toda a longa vida, Vitória dá imediatamente conta da simpatia que lhe mereceu Maria da Glória, a quem antes só vira fugazmente em Londres quando ambas tinham apenas 8 anos. Escreve, assim, a 16 de Setembro de 1833: "Tem só mais um mês do que eu e foi muito amável comigo - cresceu muito mas é forte. É muito doce e amigável. Usa o cabelo preso em dois grandes canudos e com um pequeno coque atrás." Estas palavras serão devidamente acompanhadas por um desenho que retrata, de memória, a sua nova amiga.

Com Maria já de regresso a Portugal, Vitória, ainda princesa e a viver sob a apertada tutela da mãe, a Duquesa de Kent, em Kensington Palace, não deixa de se preocupar com a precária realeza da amiga. Rejubilará, por isso, quando lhe disserem que estão concluídas favoravelmente as negociações que conduzirão ao casamento de Dona Maria II (já viúva aos 16 anos, pois Augusto de Beauharnais, sucumbira à difteria após dois meses em Lisboa) com o seu primo, Fernando de Saxe Coburgo, em 1836.

"Mal consigo expressar quão feliz me sinto por ver-nos ligados de forma tão estreita à Rainha de Portugal, que foi sempre tão amável comigo e pela qual sinto a maior afeição. É calorosa, honesta e afetuosa. Tem uma fisionomia delicada, um bom nariz e um belo cabelo." Nestas páginas escritas a 6 de fevereiro de 1836, não faltará ainda o elogio do noivo: "Ouvi dizer que Fernando também tem muitas qualidades. Tem um espírito puro, bom e dizem ser muito bonito."

citacao"Quer os diários, quer as cartas da Rainha Vitória foram objeto de censura póstuma e de uma redução deliberada dos aspetos mais femininos"

O que a entusiástica princesa ainda não podia saber é que ela própria se perderia de amores por outro Saxe-Coburgo, primo direito de Fernando, Alberto de seu nome. Ambos eram sobrinhos de sua mãe, a Duquesa de Kent.

Rainha desde junho de 1837, Vitória revelará, em várias passagens do seu diário e em correspondência trocada com os seus ministros, a preocupação com as atribulações vividas durante o reinado de Dona Maria II, nomeadamente com as consequências que isso poderá ter para a secular influência britânica em Portugal. As cartas trocadas entre ambas evitarão, todavia, a política, em favor da troca de notícias e de impressões sobre a vida familiar de cada uma, sobretudo após o casamento de Vitória com Alberto de Saxe Coburgo, a 10 de fevereiro de 1840.

Apaixonadas ambas pelos maridos, o que não deixava de ser uma novidade em contexto real, estavam também em sintonia quanto ao papel que queriam ver atribuído pelos respetivos cortesãos aos príncipes consortes, estatuto de certo modo contra natura numa sociedade que glorificava a hegemonia do pater familias.

"Enquanto estiver neste miserável mundo - escreve a rainha portuguesa em francês, língua que ambas usavam para comunicar, à imagem do que acontecia então na maior parte das cortes europeias - a sua [de D. Fernando] posição será tão boa quanto a minha possa ser. Nunca permitirei a quem quer que seja que estabeleça uma diferença no que quer que seja entre mim e ele e exijo que se lhe obedeça como se deve obedecer a mim."

No que estariam menos em concordância seria, todavia, quanto às alegrias da maternidade. Dona Maria adorava bebés de ambos os sexos e parecia-lhe que, quando se amava o marido como era o seu caso, todos os sacrifícios valiam a pena para multiplicar os frutos desse amor. À recém casada prima (recorde-se que eram ambas casadas com dois primos) Vitória, escreverá a rainha de Portugal: "Verá como é doce ocupar-nos das nossas crianças e espero de todo o meu coração que essa ocupação lhe chegará brevemente."

A rainha de Inglaterra não partilhava, porém, do mesmo entusiasmo, o que não causará pouca perturbação a Dona Maria II, que rejubilaria ao tomar conhecimento da primeira gravidez de Vitória e o subsequente nascimento da Princesa Real, Vicky. Menos de um ano depois, quando nasceu o primeiro rapaz, Bertie, Dona Maria recomendou-lhe que evitasse os ciúmes da mais velha, como ela conseguira fazer quando o nascimento do Infante Dom Luís pôs em causa a "monarquia absoluta" do bebé Pedro.

Embora hoje alguns historiadores considerem que a rainha Vitória sofreu continuadamente de depressão pós-parto, que a Medicina do século XIX não estava em condições de diagnosticar, as duas iam comparando os pormenores da evolução e crescimento dos respetivos filhos, trocando presentes e retratos. A rainha portuguesa chegou a tricotar toucas para os pequenos primos e Vitória ficava deliciada com o envio de atlas, globos terrestres e livros sobre fauna e flora para Dom Pedro e Dom Luís, cada vez mais curiosos e interessados pelas maravilhas da tecnologia made in Britain.

Embora hoje seja admitido pelos historiadores que quer os diários, quer as cartas da Rainha Vitória foram objeto de censura póstuma (Yvonne Ward no livro Censoring Queen Victoria fala de uma redução deliberada dos aspetos mais femininos relacionados, por exemplo, com a maternidade) esta vasta correspondência fala-nos, de forma comovedora, não apenas de uma estreita amizade mantida apesar da distância, mas também de duas jovens assustadas com a dupla missão de que a Vida as encarregara: a de mulheres, a que o século XIX atribuía apenas um papel secundário, e o de Rainhas capazes de se sobrepor aos jogos de poder essencialmente masculinos. Nas cartas que trocavam encontrariam talvez a certeza de que só elas duas, em todo o mundo, podiam compreender tudo o que, na verdade, lhes era exigido.

A morte inesperada de Dona Maria, aos 34 anos, vitimada pelo seu 11º parto (contra a recomendação dos médicos, que a consideravam demasiado obesa para suportar os riscos de uma nova gravidez), deixou a rainha Vitória profundamente consternada.

Ao saber da notícia, escreve no diário, seu confidente de toda a vida: "Pobre querida Dona Maria, tinha os seus defeitos, mas também as suas grandes e boas qualidades. Os seus defeitos deviam-se a que ela realmente quase não tivera educação. Era uma esposa devotadíssima e amantíssima, uma mãe exemplar e uma verdadeira amiga afetuosa. Sempre gostei dela, tendo-a conhecido desde a sua infância, e embora não tenhamos voltado a encontrar-nos, costumávamos corresponder-nos constantemente e éramos muito íntimas."

Vitória e Alberto transportariam este carinho para o filho e herdeiro de Dona Maria, o jovem Rei Dom Pedro V, a quem tinham recebido na intimidade do seu lar, em Londres, aquando da inauguração da Exposição Universal de Londres, em 1851. No então príncipe herdeiro português, Alberto de Saxe Coburgo parece ter encontrado uma comunhão de interesses que não chegaria a ver no seu próprio filho, o rebelde Bertie, futuro Rei Eduardo VII de Inglaterra.

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