Conventos de Lisboa. Visita guiada a "dois colossos da cidade"
Se há característica marcante no Hospital de S. José é o arco que é preciso atravessar para entrar nas urgências. Mandariam as boas práticas de acessibilidade do século XXI que a entrada numa edifício do género fosse ampla e desimpedida, mas neste caso, a bem da preservação histórica, o arco, além de emblemático, é histórico. Pertence ao antigo Convento de Santo Antão, colégio dos Jesuítas, que aqui funcionou até à expulsão desta ordem religiosa a 3 de setembro de 1759.
"Este espaço faz parte da cidade mas estes arcos, que fazem parte da memória do edificado, perturbam a contemporaneidade, em que precisamos de entradas mais largas", diz Ricardo Máximo, técnico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que este sábado fará o itinerário pelos conventos de Sant"Ana, um dos percursos que fazem parte do programa Open Conventos, em parceria com a câmara municipal de Lisboa, o Patriarcado e a Universidade Nova de Lisboa.
"Curiosamente, o pórtico que as pessoas mais conhecem nem é o mais nobre", nota Ricardo Máximo, para começo de conversa.
O Arco da Graça, que dá para o edifício principal (classificado como de interesse público), é o mais nobre, mas é pelo das urgências que mais pessoas entram no Hospital de São José.
A zona hoje conhecida como Colina de Sant"Ana, é, de há muito e como hoje, ponto de confluência de imigrantes de muitas geografias. Antes do Convento de Santo Antão se instalar aqui, no século XVI, era um arrabalde sem história, mas "boas águas" e, portanto, apetecível. Durante algum tempo, era para aqui que vinham os que estavam doentes. "O refugo da grande cidade eram deslocadas para aqui - vítima da peste, cemitérios...", diz Ricardo Máximo, lembrando que não é por acaso que até há pouco havia aqui o Hospital de São Lázaro, protetor do doentes.
"Esta zona era um parente difícil da cidade", resume Ricardo Máximo sobre esta zona que, a partir do século XIII, se vai integrando na cidade, à medida que as grandes cidades mercantis, como Lisboa, se afirmam.
Após o terramoto de 1531, a cidade refaz-se. Surgem novas igrejas cristãs e instalam-se em Lisboa mais pessoas, que se instalam em zonas como a colina de Sant"Ana. Por ter "boas águas", permitiam a criação de um espaço urbano. "A cidade já está interligada", diz Ricardo Máximo. Estamos no século XVI, altura em que surgem os Jesuítas, a congregação fundada em Paris pelo basco Inácio de Loyola (e, entre outros, pelo português Simão Rodrigues).
Fiéis ao papa e missionários, vêm para Lisboa, cidade obrigatória para quem quer espalhar a fé. Instalam-se nas proximidades do antigo hospital de Todos os Santos, ao Rossio, inicialmente. Rapidamente lhes é doada uma primeira casa, na Mouraria. É o Convento de Santo Antão.
A mudança para a colina aconteceu depois do primeiro Colégio dos Jesuítas, na Mouraria se ter tornado pequeno. Muito pragmáticos, os jesuítas que aqui se instalam dedicam-se ao ensino. "Rapidamente, orientam os meninos órfão, fundado por D. Catarina de Áustria. Eles vão lutar contra indisciplina de que tinham fama, ao mesmo tempo que ganham fama. Têm apoio régio e muitos alunos". Mudam para a colina de Sant"Ana, e este é o Convento de Santo Antão-o-Novo.
Ricardo Máximo usa uma e outra vez a palavra colosso para designer o edifício do atual hospital, procurando dar uma boa ideia da dimensão deste lugar. O que é hoje é a capela - uma igreja já de generosas proporções - era, no tempo dos jesuítas, a sacristia (e classificado como monumento nacional desde 1933).
A igreja, olhava para o centro da cidade, e foi sendo desmantelada para responder às necessidades médicas. Resta pouco, mas significativo - oito esculturas dos apóstolos que um dia estiveram no interior da igreja e hoje adornam a fachada do hospital.
O Marquês de Pombal, que ordenou a expulsão dos Jesuítas, via-os como obstáculos aos seus planos, mas durante dois séculos representaram a educação e a ciência.
"Muito saber foi transmitido aqui", diz Ricardo Máximo subindo as escadas do antigo convento, hoje hospital, a caminho do salão nobre. Nas paredes há azulejos do século XVIII com cenas que representam o conhecimento dos mares e do céu, as matérias que eram, afinal, lecionadas nesta salas, local de formação da elite lisboeta. Aqui foi lecionada por dois séculos a Aula da Esfera - onde chegaram novidades de matemática, astronomia, geometria.
O torreão do relógio deste convento era marcante na cidade. "Quem tem o relógio controla o tempo, quem controla o tempo, controla a ordem, quem controla a ordem, controla a ordem social", resume o cicerone desta visita, que passa também pela topografia e toponímia da cidade. Em 1775 começa a ser convertido em hospital.
O edifício fica para trás e vamos descendo a colina, de olhos postos nas placas. A primeira e mais significativa é a Travessa do Colégio. "Já passaram dois séculos e ela resiste", nota Ricardo Máximo. Também há uma Calçada Nova do Colégio.
Com a igreja da Pena fica para trás, a zona pitoresca. Resiste a casa construída sem ordenamento e pátios como aquele em que nasceu Amália Rodrigues.
Atalha-se caminho até outro dos gigantes da cidade - o Convento da Encarnação, que, por estar fechado ao público, é ainda mais desconhecido. Apenas a igreja se pode ver, quando abre ao culto. Propriedade do Estado, mas à guarda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é uma casa de acolhimento, respeitando o plano para ele traçado desde o princípio.
Cor de vinho, o edifício do convento tem porta de entrada num largo pouco movimentado. É, sem surpresa, o Largo da Encarnação. Sobre uma das portas, um curioso relevo: metade brasão, a outra sem inscrição. É parte da história da fundadora.
Estamos agora no final do século XVI. D. Maria, filha de D. Manuel I e da sua terceira mulher, Leonor de Áustria, funda esta casa de recolhimento. Chegou a ser a mulher mais rica de Portugal e uma das mais ricas da Europa católica. Herdou pelo lado espanhol, mas também após a morte do pai. Apesar de várias vezes ter estado a ponto de casar-se (e de, por isso, lhe chamarem a "sempre noiva"), sucedia sempre algum evento que alterava os planos (tanto com o herdeiro ao trono de França e Felipe de Espanha) e ficou solteira. À luz das regras da época, Maria tão-pouco se podia casar com qualquer pessoa.
Dedicou-se à beneficência. A Igreja de Nossa Senhora da Luz é talvez das suas obras mais conhecidas (é onde está sepultada), mas o Convento da Encarnação é um dos mais marcantes da cidade. Dedicada a S. Bento de Avis, foi pensado sempre para estar nas mãos dos militares. Nesta casa viviam as mulheres dos homens que iam para a guerra. Nesta casa viviam senhoras e cristãs-velhas. Esposas, viúvas e filhas. Uma pintura que agora se pode ver na entrada mostra as mulheres - as que eram casadas e as freiras.
Eram mulheres com estatuto que aqui chegavam com as suas serviçais e que foram convertendo o convento numa pequena cidade para lá da sua cerca. "Estava cheio de famílias e não de população eclesiástica. Aqui não temos um convento, mas uma cidade fechada e do mundo feminino. Existe para proteção deles, os homens. Elas estão cá porque eles estão fora, é uma garantia para eles da reserva delas", nota Ricardo Máximo.
No convento, atualmente algo degradado e à espera de reabilitação, há um exemplar da roda - a que era usada para que quem vivia no convento pudesse comunicar com o exterior (e não a dos enjeitados). Há pinturas de Bento Coelho da Silveira, uma delas vinda da igreja. E um claustro, aparentemente igual a todos os claustros, mas para o qual Ricardo Máximo chama a atenção. É assimétrico e nota-se que foi crescendo a diferentes velocidades (e com diferentes carteiras). "As senhoras vinham com as suas serviçais e toda a gente e viviam aqui". E, com o passar do tempo, criaram-se pequenas aldeias dentro do próprio convento.
A terceira e a última paragem do itinerário pelos Conventos de Sant"Anna termina no Convento de São Domingos, fechando assim o círculo. Afinal, o Hospital de São José quando nasce substitui o de Todos os Santos, que ficava no Rossio.
É um edifício associado à Inquisição e que, em 1959, foi destruído por um incêndio. A igreja em muito mau estado. O restauro só aconteceria em 1994. "Quando agora falamos sobre Notre-Dame e nos perguntamos como deve ficar podemos pensar no caso da Igreja de S. Domingos", diz Ricardo Máximo. As pedras, quase derretidas, foram mantidas deixando registo desse acidente.
Os conventos de Sant"Anna é um dos itinerários programados para esta sexta-feira e sábado no âmbito do Open Conventos, uma iniciativa que visa promover e defender esta tipologia, tão comum na paisagem da cidade, como explica ao DN a diretora de Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Margarida Montenegro.
"Esta é uma forma de dar a conhecer os conventos, e dar a conhecer é uma forma de proteger", diz Margarida Montenegro sobre o objetivo deste programa, em que são esperados mais de mil visitantes. "Também salvaguardar, chamando a atenção para estas casas. É precisar dar a conhecer a história destas casas. E discutir os seus usos". É a diretora de Cultura que lança a pergunta: "É melhor estarem fechados ou reconvertê-los?".
Vinte e seis edifícios abrem as portas para visitas, gratuitas - em regime livre ou guiado. Este é o programa:
Sexta-feira, dia 24
Itinerário Os Conventos da Pampulha
14h15, itinerário guiado por Augusto Moutinho Borges
Convento de São Francisco de Paula (Igreja de São Francisco de Paula)
Convento de São João de Deus (Convento da Pampulha | Centro Clínico da GNR)
Convento de Santo Alberto (Capela das Albertas | Museu Nacional de Arte Antiga)
Convento de Nossa Senhora dos Remédios (Convento dos Marianos | Igreja Evangélica Lusitana)
Visitas guiadas:
10h e 18h - Convento de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Colégio de Nossa Senhora do Bom Sucesso), guiadas por Sofia Rodrigues e Sandra Costa Saldanha
15h - Convento de Nossa Senhora de Jesus (Academia das Ciências e Museu Geológico), guiada por Padre António Boto e Hélia Silva
Visitas livres: 10h-18h
Mosteiro de Nossa Senhora da Nazaré de Lisboa (Convento das Bernardas)
Convento de São Francisco de Paula (Igreja de São Francisco de Paula)
Convento de Nossa Senhora de Jesus (Igreja das Mercês)
Mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa (Igreja de Santa Catarina)
Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Cardaes
Casa Professa de São Roque (Igreja e Museu de São Roque)
Convento de São Pedro de Alcântara
Mosteiro de São Vicente de Fora
Convento de Nossa Senhora da Graça (Igreja da Graça)
Convento da Madre de Deus (Museu Nacional do Azulejo)
Sábado, dia 25
Itinerário Os Conventos do Bairro Alto
10h00, guiado por Pedro Rocha
Mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa (Igreja de Santa Catarina)
Casa Professa de São Roque (Museu de São Roque)
Convento de São Pedro de Alcântara
Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Cardaes
Itinerário Os Conventos do Chiado
10h, guiado por Raquel Henriques da Silva
Convento da Santíssima Trindade - exterior (Cervejaria Trindade)
Convento de Nossa Senhora do Carmo (Museu Arqueológico do Carmo e Quartel do Carmo)
Convento do Espírito Santo - exterior (Armazéns do Chiado)
Convento de São Francisco da Cidade (quarteirão da Academia de Belas Artes)
Itinerário Os Conventos de Sant"Ana
15h00, guiado por Ricardo Máximo
Colégio de Santo Antão-o-Novo (Hospital de São José)
Convento de Nossa Senhora da Encarnação
Convento de São Domingos de Lisboa (Igreja de São Domingos)
Visitas guiadas:
10h - Mosteiro de São Vicente de Fora, guiada por Padre Bruno Machado
10h - Convento de São Francisco da Cidade, guiada por Fernando António Baptista Pereira
10h e 15h
Convento de Nossa Senhora da Conceição do Monte Olivete - Convento do Grilo, guiada por Isabel Guedes
Convento de Santos-o-Novo, guiada por Paulo Santos Costa
Convento da Madre de Deus (Museu Nacional do Azulejo), guiada por Dora Fernandes
Convento de São Pedro de Alcântara, guiada por Ricardo Máximo
Casa Professa de São Roque (Museu de São Roque), guiada por João Simões
15h - Convento de Nossa Senhora da Graça, guiada por Margarida Elias
17h - Convento de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Colégio de Nossa Senhora do Bom Sucesso), guiada por Raquel Henriques da Silva
Visitas livres: 10h-18h
Mosteiro de Nossa Senhora da Nazaré de Lisboa (Convento das Bernardas)
Convento de São Francisco de Paula (Igreja de São Francisco de Paula)
Convento de Nossa Senhora de Jesus (Igreja das Mercês)
Mosteiro do Santíssimo Sacramento de Lisboa (Igreja de Santa Catarina)
Convento de Nossa Senhora da Conceição dos Cardaes
Casa Professa de São Roque (Igreja e Museu de São Roque)
Convento de São Pedro de Alcântara
Mosteiro de São Vicente de Fora
Convento da Madre de Deus (Museu Nacional do Azulejo)
(A entrada nas igrejas é condicionada durante os atos litúrgicos.)