Capitão Marvel é mulher e feminista. Habituem-se
"Não é só um filme feminista, é um filme humanista."
A co-argumentista e co-realizadora do novo lançamento do Universo Cinemático Marvel, Anna Boden, tem motivos para estar entusiasmada: em 11 anos e 21 filmes do departamento Marvel da Disney, o que estreia na próxima semana é o primeiro a ter como protagonista uma personagem feminina e uma mulher como realizadora -- e apenas o segundo a ter mulheres no team de argumentistas. Uma novidade que surge após a companhia ter, com Black Panther, posto a diversidade a liderar as bilheteiras nos EUA e está a deixar muitos fãs masculinos do Universo Marvel agastados.
"Por que é o Capitão Marvel uma rapariga?", perguntava um deles na página Marvel Fans Only (Só para fãs da Marvel) do Facebook. "Espera espera espera. Por que é o Capitão Marvel mulher? Costumava ser um homem. Politicamente Correto"; "Então o grosso da audiência dos filmes de super-heróis é masculina e estão a tentar enfiar-nos atrizes pela goela abaixo? (...) Boa sorte com a bilheteira"; "Recuso-me a ver isto porque ela está a tentar ser a protagonista e a mais poderosa heroína. Toda a gente esteve a trabalhar no duro nos últimos dez anos para conquistar um lugar e não se devem conseguir coisas assim, mas porque se trabalha por elas."
A reação é tão exacerbada que deixa outros fãs perplexos: "Sendo um homem, nunca vi tanto ódio por um filme da parte de homens como com este. (...) O que é parcialmente justificado pela decisão de mudar completamente o género do protagonista. Pessoalmente não vejo nada que justifique tanto ódio, até porque nem sequer viram o filme."
Como explica a atriz, argumentista e produtora Arghierenia Kyrimi no site feminista Fembot, num artigo intitulado Is Marvel trying hard enough to be a feminist? (a Marvel está a tentar o suficiente ser feminista?), é um problema de ignorância. "A nova personagem é feminina porque a companhia tem um enorme manancial de personagens femininas e perdeu o medo de lançar um filme com uma protagonista mulher. Carol Danvers [o nome da personagem] herdou a capa de capitão Marvel do seu mentor Mar-Vell. (...) Muitas outras capas mudaram de mãos ao longo da história da banda desenhada Marvel. E nenhuma personagem foi alvo de tanto ódio como Danvers, por ser uma mulher a assumir o legado de um homem para o honrar." E prossegue: "Quando 50% da população mundial é mulher, porque seria estranho 50% dos super-heróis serem mulheres?"
A questão está a fazer correr tinta -- ou bits. No New York Times de quinta-feira, um longo artigo debruça-se sobre ela, sob o título Can 'Captain Marvel' fix Marvel's Woman Problem? (Pode Capitão Marvel resolver o problema da Marvel com as mulheres?). Lembrando que a companhia em dez anos pareceu não precisar de protagonistas femininas e que tem sido criticada pela sua lentidão nessa matéria, pergunta-se por que motivo levou tanto tempo até lançar o primeiro filme sobre uma super-heroína e se este vem finalmente colmatar a falha.
Em primeiro lugar, o NYT recorda (ou explica a quem não sabe, o que pelos vistos inclui muitos fãs da Marvel que conhecem os filmes mas não a banda desenhada) que a personagem Carol Danvers existe desde os anos 1960 -- surgiu pela primeira vez em 1968, como pouco mais que o interesse sentimental da personagem masculina Capitão Marvel -- e a partir dos anos 1970, provavelmente por influência do movimento feminista, passou a ser Miss Marvel, combatendo denodadamente alienígenas e com uma série de BD só dela. Depois de um hiato em que foi pouco desenvolvida, assumiria em 2012 o título de Capitão Marvel.
"Nos anos 1980 e 1990, a BD era muito insultuosa para as mulheres, o que ocasionou a perda da audiência feminina", explicou ao NYT a autora Kelly Sue DeConnick, responsável pela promoção de Danvers a capitão. "E quem é que vai querer ler algo que é insultuoso para si?"
DeConnick, filha de um militar da Força Aérea, transformou Danvers em Capitão Marvel e mudou-lhe o visual, da tanga e muita pele à mostra que caracterizavam a personagem para um macacão mais adequado à sua génese militar (Danvers/Capitão América é uma piloto da Força Aérea), inscrevendo a personagem na tradição dos ases do ar que admirou desde sempre.
Mas se a atual autora da BD da Marvel e da série Capitão Marvel, Kelly Thompson, sublinha que a companhia apostou forte na personagem em termos de BD, certo é que no que respeita a filmes as personagens femininas nunca tiveram até agora um veículo próprio cinematográfico, surgindo apenas em conjunto com super-heróis masculinos. Em causa, crê DeConnick, está a ideia de que as mulheres veem filmes sobre homens, mas os homens não veem filmes sobre mulheres. "Porque as mulheres têm um estatuto inferior na nossa cultura, a projeção é para cima, não há tendência para a mudança de papéis "para baixo."
Que a Marvel terá tido essa perspetiva parece certo: em emails da Sony tornados públicos em 2015, o CEO de então da Marvel Entertainment, Isaac Perlmutter, dizia que o fime Elektra (que não teve bons resultados) tinha sido péssima ideia, que Catwoman tinha sido um desastre e Supergirl outro, o que leva a crer que achava que os filmes de super-heroínas não tinham potencial de sucesso. Mas o êxito estrondoso de Super-Mulher, em 2017, veio provar que não é o caso.
Claro que, frisa o NYT, a falta de representação feminina está longe de ser um exclusivo dos filmes da Marvel. Dos 100 filmes americanos mais vistos nos EUA, só 16% têm mulheres na realização, argumento, produção, montagem, etc. Nos mesmos filmes, só 24% dos protagonistas eram mulheres e dessas só 32% pertenciam a uma minoria étnica. Algo que aparentemente a Marvel, embalada com o êxito de Black Panther, quer mudar: prepara-se para lançar também um filme com a personagem Viúva Negra, interpretada por Scarlett Johansson na série Vingadores, como protagonista. E fala-se de um outro com Miss Marvel, uma super-heroína muçulmana do universo Marvel da BD, a liderar.
Mas para já chega Capitão Marvel -- no Brasil é "Capitã"; em Portugal será capitão, já que a patente não é declinada no feminino --, interpretada pela oscarizada Brie Larson, que a realizadora e argumentista descreve como "uma personagem feminina realmente poderosa, interessante, única e independente. Estamos muito entusiasmados por contar esta história sobre alguém que não tem só poder, mas é também densa e interessante e humana. Porque não é só um filme feminista, é também humano."
E explica porquê: "À medida que se conhece e aceita o que a define, alcança o seu verdadeiro poder. Parte disso implica rejeitar quem lhe diz que não é suficientemente forte e que aquele não é o seu lugar. Acho que muita gente vai identificar-se com isso, especialmente mulheres."
Kelly Thompson reitera a ideia: "O que a personagem precisava de ser quando foi criada nos anos 1960 é muito diferente do que tem de ser agora, em 2019, quando é a figura central de um filme. Este filme vai torná-la mais importante para mais pessoas do que nunca."
Com um digitalmente rejuvenescido Samuel L Jackson (Nick Fury) como sidekick, Carol Danvers/Brie Larson é uma piloto com super-poderes extra-terrestres que na Terra dos anos 1990 vai combater uma invasão de alienígenas. Na tradição da seminal Sigourney Weaver na saga Aliens, que já tinha provado em 1979 que um filme de ação e terror liderado por uma mulher podia ser não só um êxito como transformar-se num clássico e iniciar uma das epopeias mais marcantes do cinema contemporâneo.