António, um rapaz de Lisboa inventado por um brasileiro

Chegou na quinta-feira às salas um filme que nos dá a capital como feitiço de uma crónica de juventude. <em>António Um Dois Três</em> é realizado pelo brasileiro Leonardo Mouramateus, que conversou com o DN sobre o seu gosto de trabalhar com uma equipa (maioritariamente) portuguesa.
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Encontramo-nos numa esplanada da avenida de Roma. O barulho dos carros a passar, o burburinho da conversa do lado, a máquina do café que se escuta ao fundo, são tudo sons de Lisboa num dia qualquer. Esta é a cidade para onde Leonardo Mouramateus (n. 1991), brasileiro de Fortaleza, se mudou para vir estudar Belas Artes. E, no entretanto, realizou uma longa-metragem, com longos intervalos de produção. "Um filme que nasceu precisamente das histórias aqui vividas, por mim e por outras pessoas", diz. "Um filme sobre o estar em trânsito, se sentir estrangeiro no seu próprio lugar - tema presente em vários dos meus trabalhos. Sempre houve uma ideia de deslocamento ou de passagem."

Estrangeiro no seu próprio lugar? Sim, porque o protagonista de António Um Dois Três, esse não é brasileiro. António (Mauro Soares) é um rapaz de Lisboa que, na sua ausência de rotina, nos é apresentado como um simpático malandro. Parece não saber muito bem o que quer da vida: "a sensação de deslocamento é muito mais do que geográfica. Ela é emocional. Tem muito mais a ver com a adolescência, o sentimento de perda, de coração partido, de juventude." Depois de uma noite passada fora, António chega a casa e o pai confronta-o com uma carta anónima que encontrou no correio. Nela se lê que o filho não anda a frequentar o curso que ele lhe está a pagar e especula-se sobre o que fará nessas horas livres. Finda a leitura da misteriosa epístola, o jovem foge e procura abrigo em casa da ex-namorada, onde acaba por conhecer uma brasileira que, segundo se diz, vai para a Rússia ou vem da Rússia. Apaixona-se por ela.

Filme em três atos, como o título indica, este é apenas o princípio de uma bela crónica geracional, sob influência de um discreto feitiço da cidade, que se vai construindo como um puzzle de diálogos e situações espelhadas na preparação de uma peça de teatro. E em cada um desses graciosos detalhes reside qualquer coisa que foi inspirada pelas experiências de toda a equipa: "Um guião que é uma gestão de realidades, uma espécie de mapeamento de desejos, não só meus, mas da equipa", sublinha o jovem realizador, sempre preocupado que se entenda a obra como algo que contém o ADN de todos quantos trabalharam nela.

Outra das inspirações de António Um Dois Três é o Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski: "Surge só no final do filme, na peça de teatro que o António está fazendo, mas acaba contaminando tudo para trás... É uma obra clássica, romântica, que fala diretamente dessa sensação de juventude." E isso lembra-nos o filme As Quatro Noites de um Sonhador (1971), de Robert Bresson, adaptado do mesmo livro de Dostoiévski. Leonardo diz que sim, que é possível. Mas a sua afinidade com o cineasta francês é de outra ordem: "Eu faço os meus filmes a partir de coisas materiais, daquilo que existe, do que está ao redor. E aí, sem dúvida, reside Bresson, numa ideia de suficiência."

Curiosamente, se folhearmos as Notas Sobre o Cinematógrafo, escritas pelo próprio Bresson e publicadas em 1975, encontramos uma possível definição do tipo de realizador que é Leonardo Mouramateus: "O futuro do cinematógrafo está numa nova raça de jovens solitários que filmarão e apostarão até ao último centavo sem se deixar derrotar pelas rotinas materiais do ofício." Duvidamos da parte do "solitário", mas temos a certeza de que a filosofia de produção de alguém que se sente afortunado por ter nascido na época das câmaras digitais é muito semelhante a esta. Ele não depende de uma grande estrutura para filmar e gosta do "lugar da imprecisão" alcançado pela liberdade criativa: "Mesmo que eu tenha um orçamento mais justo para fazer os meus filmes, onde eu vou investir é na possibilidade de improvisar, de repetir, de fazer as coisas com calma e paciência - prefiro essa liberdade a uma estrutura maior. Gosto de ir encontrando o filme à medida que se ensaia", confessa.

A propósito, perguntamos-lhe sobre o que poderá estar reservado ao cinema no Brasil nos próximos tempos e, dentro da sua falta de otimismo, o realizador consegue lançar um ténue raio de esperança, dizendo que as pessoas talentosas continuarão a fazer coisas talentosas, mesmo com muito poucos recursos. "O que me preocupa mais", acrescenta, "são os trabalhadores. Um governo que faz com que o povo trabalhador se volte contra outros trabalhadores é de uma crueldade e de um projeto político extremamente nefasto. Eles foram aos pontos de maior resistência: a educação e a arte..."

Por agora, Lisboa é a cidade da luz contra as trevas. Um lugar de juventude em trânsito, em movimento, captada pela lente subtil e generosa de um rapaz de Fortaleza.

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