A Lisboa de Salazar foi terreno de liberdade para quem fugiu ao Holocausto
Passaram-se dez anos desde que Nicholas Oulman nos mostrou quem era o seu pai, que ele conhecia bem, mas não em todas com todas as dimensões e esquinas em que Alain Oulman aparece retratado no documentário Com que voz. E há qualquer coisa do editor, encenador e compositor de alguns dos maiores temas cantados por Amália Rodrigues no rosto do seu filho.
Além desse, a pronúncia americana quando diz algo em inglês denuncia os anos passados em Nova Iorque e quando chegam as palavras francesas cumprem o mesmo papel em relação não só aos 10 anos em que viveu em França, com o pai, mas também a toda a sua família, o "clã" Oulman, que desde há muito habitou e habita uma quinta no Dafundo.
É aos Oulman, família judia, que regressamos para falar do novo filme de Nicholas, Debaixo do Céu, que hoje se estreia no Cinema Ideal, em Lisboa. Foi durante as entrevistas à família para o filme Com que voz que o realizador despertou para a história que conta no novo filme. "Depois da ocupação da Alemanha e de Paris, parte da minha família teve de fugir e passou por Portugal antes de ir para Inglaterra. A minha família que vivia no Dafundo, naquela altura as minhas tias e os meus avós, deram guarida a algumas pessoas; não só familiares, também ajudaram outras famílias judias que passaram por cá", conta ao DN.
Depois, o espectro abriu-se: "Eu não sabia que naquela altura Portugal tinha sido uma porta do Ocidente e com um papel tão importante na salvação de milhares de judeus que estavam a fugir da Europa em guerra e a tentar arranjar uma porta para poder escapar, sair e fugir."
Das memórias das suas tias partiu para conversas com a historiadora Irene Pimentel ou a especialista em estudos judaicos Esther Mucznik. "Vim a descobrir que de facto Portugal tinha tido os campos de residência fixa, que Salazar tinha autorizado aquelas organizações internacionais financiadas pelos EUA para ajudar os refugiados, que chegavam da Europa a tentar adquirir os documentos necessários para poderem transitar para a América, América do Sul, ou para a antiga Palestina, a terem sede aqui, depois de a França ter sido invadida."
No filme, as vozes são de alguém já velho, mas aquilo que elas contam não poderia senão ser formado por impressões de crianças, judias, claro. É pelos olhos delas que assistimos à perseguição da Alemanha nazi: o dia em que uma deixou de ir à escola que sempre frequentara, o dia em que outra viu os vizinhos deixarem de lhe falar, em que deixou de poder nadar na piscina, ou aquele em que um rapaz que, quando seguia no comboio onde fugia ao destino dos pais, acreditou que os bombardeamentos lá fora eram um espetáculo de fogo-de-artifício para crianças.
Nunca vemos os rostos por detrás das vozes. No plano da imagem que acompanha o som dos testemunhos, recolhidos em entrevistas, corre um trabalho exaustivo de arquivo - de cinematecas, Museu do Holocausto, do arquivo de Steven Spielberg, casas de arquivo como a Huntley, Gaumont Pathé, etc. - e de montagem. Só no final vemos os rostos de Lolita Goldstein, Pedro Kalb, Henny Porter, Eva Arond, Fred Manasse, Sylvain Bromberger, e Ginette Horowitz. Até lá só os escutamos.
O espanto deles à chegada a Lisboa - estávamos então no Estado Novo - é acompanhado por imagens da cidade naquela altura, mas a perspetiva, essa, será completamente nova para muitos espectadores. "Não tem nada a ver com a imagem que Lisboa tinha no tempo salazarista. Mas é normal, porque vinham de uma Europa em guerra, atravessando uma Espanha acabada de sair de uma guerra civil, com tudo destruído, chegavam a Portugal onde o sol brilhava, as árvores tinham frutos, havia comida nas lojas, e havia a liberdade de poder andar sem aquele medo constante de ser apanhado e mandado para um campo de concentração ou deportado. Ainda por cima são crianças, têm uma visão mais inocente", nota Nicholas Oulman.
Encontrar estas testemunhas não foi um trabalho fácil, recorda o realizador. "São pessoas que não são muito ligadas à Internet, não são pessoas públicas, são pessoas comuns. Cheguei a eles através de uma pesquisa feita pelo Carlos Guerreiro, jornalista. Acho que ele usou as páginas amarelas americanas, ou um modo assim bastante antiquado, para chegar a um primeiro contacto que depois dava acesso a um número de telefone e aí eu entrava em ação."
Veio mais tarde o trabalho de, por questões orçamentais, limitar geograficamente os entrevistados: ficou definido que iria encontrá-los na Costa Leste dos Estados Unidos e na Argentina. Quando começaram as entrevistas, começou também o espanto de quem as escutava. "Digamos que os relatos que me foram contados não eram exatamente aquilo de que eu estava à espera. Eu estava à espera de mais dramatismo, de mais intensidade dramática nos relatos e de uma coisa mais de adulto. Deparei-me com memórias de crianças. Apercebi-me rapidamente de que havia ali qualquer coisa que era muito inocente mas ao mesmo tempo forte", recorda.
Perguntamos-lhe quem encontrou do outro lado, o que é que aquelas pessoas, já idosas, guardavam daquelas crianças, que presença tinham nas suas vidas aquelas memórias. "Apesar de terem passado 60 ou 70 anos ainda são memórias muito presentes e bastante marcadas nessas pessoas, são momentos da vida que ficaram para sempre e, aliás, uma coisa que me espantou foi que, depois de terem passado por aquilo que passaram na infância, o resto da vida para eles é 'venha o que vier, não pode ser pior do que aquilo que já aconteceu'. Fiquei surpreendido por estas pessoas terem ao mesmo tempo uma inocência ainda e uma joie de vivre."
As memórias divergem, claro. "Há alguns que têm uma reação muito fria àquilo: era assim, era assim. E depois há outros como a Eva, que dizia: Quando andava na rua eu tentava ser o mais invisível possível, para que ninguém olhasse para mim.' Ou outra que quando andava no comboio tinha medo que alguém dissesse: 'Ei vocês, dirty jews, get out of here.'"
Enquanto fala do filme e da importância de registar aquelas memórias, Nicholas Oulman conta como as imagens de Berlim completamente destruída, que começamos por ver logo no começo de Debaixo do Céu, lhe fizeram lembrar as atuais imagens de Alepo. E não só essas. "[Vemos] as imagens dos refugiados com malas, com crianças, a tentar fugir, aqueles discursos populistas do Hitler e do Goebbels para chegarem ao poder, depois e depois vemos um Jair Bolsonaro, um Trump, aqueles discursos populistas muito xenófobos, nacionalistas... É assustador porque devíamos aprender com o passado e às vezes sinto que, em vez de estarmos a evoluir, estamos a ir ao contrário. Apesar de as imagens que tenho no meu filme serem de há 70 anos, se formos a comparar com os noticiários de hoje em dia são muito parecidas."
Ao contrário do seu pai, Nicholas Oulman não nasceu em Portugal, mas em Londres. Depois de ter sido preso várias vezes pela PIDE, Alain Oulman conseguiu ser expulso do país e rumou a Inglaterra. "Os meus pais ficaram um ano e depois ele foi para Paris, onde começou a trabalhar na editora e decidiu ficar. A minha mãe volta para Portugal e ele vem esporadicamente, três ou quatro vezes por ano. Tinha cá negócios, os pais, os filhos, a Amália..."
Nicholas viveu em Portugal até aos dez anos e depois partiu para França, foi ter com o pai. Ficou dez anos. "Acabei lá os estudos, depois estive a vaguear pelo mundo, naquela idade dos 18 anos em que uma pessoa pensa que é invencível e que vai conquistar o mundo, sabe? Fui para o Brasil durante um ano e meio e quando voltei comecei a trabalhar em cinema aqui em Portugal, foi em 80 e tal. Depois o meu pai morreu em 1990 e eu fui para Nova Iorque, onde estive 10 anos, daí é que vim para Portugal nos anos 2000." Rápido, num instante descreve a sua biografia geográfica, a que voltaria depois com mais detalhes.
Perguntamos-lhe se está fechado o processo de pesquisa pela obra e vida do pai: "Está. Assim que acabei o filme [Com que voz], fechou-se. Mas é bom porque quando os meus filhos me perguntam 'Quem era o meu avô?', [respondo]: 'Toma lá o filme.'"
E não o sabia antes? "Não sabia ao pormenor a relação que tinha com a Eunice [Muñoz], com o [João] Perry, com o [Raul] Solnado. Não sabia que quando ele fez o Busto [disco de Amália] os guitarristas chamavam àquilo 'as óperas'. Sabia que havia uma incompatibilidade entre os guitarristas e o meu pai porque quando havia jantares com a Amália lá em casa, em Paris, havia sempre problema com os guitarristas, eles nunca se davam muito bem. Aquelas filmagens do Fonseca e Costa no Soledad foram uma coisa que eu não conhecia, que o Bruno [de Almeida] me fez chegar às mãos, e acho que para quem conheceu o meu pai é tipicamente dele. Também a relação que ele tinha com os autores como a Patricia Highsmith, a Catherine Clément, ou o Amos Oz... Durante o processo [do filme] houve muita coisa que vim a descobrir sobre o trabalho, a forma como o meu pai compartimentava a vida. Por exemplo, ele nunca disse ao Amos Oz que fazia fados. Eram coisas que eu não sabia."
Inéditos, ainda há "alguns", como aqueles que Camané cantou. Sei de um rio será um dos maiores. Nicholas e Camané conheceram-se por acaso, porque o fadista vivia "por cima da quinta" da família no Dafundo. "Eu gosto da voz do Camané, acho que canta bem e ele veio lá a casa, ouviu umas músicas. Pegou no Sei de um rio e fez um trabalho ótimo. Criou-se ali uma relação. Ele tem cantado algumas músicas do meu pai que não tinham sido gravadas."
Antes de o conhecer, o filho de Alain Oulman não pensava especialmente em dar a conhecer aqueles inéditos. Entre os que restam, explica Nicholas Oulman, estão as músicas compostas para poemas da brasileira Cecília Meireles, com cuja obra existe "um problema de direitos". "O meu pai escolhia sempre as letras antes de compor as músicas", conta.