Na longa história da relação do cinema americano com os presidentes dos EUA, que remonta a D.W. Griffith, somando-se por estes dias novos títulos, ressalta um facto: a memória de Hollywood é indissociável de um imaginário político que envolveu sempre uma componente mitológica. Vê-se isso de maneira gritante no biopic hagiográfico Reagan, de Sean McNamara, chegado aos cinemas na última quinta-feira, com uma pobre abordagem didática da vida do 40.º presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan; e, com maior ou menor desconstrução, em The Apprentice: A História de Trump, de Ali Abbasi (estreia no dia 17), que não deixa de explorar uma certa atração pela fábula moderna versando sobre os anos formativos de Donald Trump. .Em ano de eleições americanas, nenhum dos filmes parece estar ao nível do que se fez para trás nesta matéria. E talvez uma boa forma de celebrar alguns capítulos relevantes da “cinematografia presidencial” seja começar por uma amplamente esquecida comédia dramática de Frank Capra: State of the Union (1948), que no mercado português se chamou Um Filho do Povo. Logo aos primeiros minutos desta obra admirável, alguém diz a uma jovem Angela Lansbury (num dos seus primeiros papéis de peso) que um dia ela chegará à Casa Branca, cabendo-lhe por enquanto assumir as rédeas do jornal que o pai magnata lhe deixou. .E como é que vai essa personagem de Lansbury mexer as peças? Apresentando o seu amante, outro magnata da aviação, como candidato republicano às presidenciais. Um homem de origens humildes, interpretado por Spencer Tracy, que para ela significa, na prática, um veículo para as suas ambições na White House. Embora a eloquência dele no discurso espontâneo possa ser um pau de dois bicos... Essa “rara combinação de sinceridade e garra” resulta afinal em afirmações tão escandalosas como aquela que faz o estratega de campanha abandonar a sala: diz Tracy que o Sonho Americano não é fazer dinheiro, mas ser livre, ter direito à saúde e bem-estar, ajudar os países mais pobres e trabalhar para a paz mundial (acrescente-se: tão necessária agora). .Estamos no domínio da sátira, obviamente. Mas uma sátira calorosa e inspiradora, como só Capra, onde se vai sugerir ainda uma segunda vez que a solução para os Estados Unidos seria ter uma mulher presidente - aí, a mulher de quem se fala é a esposa legítima do candidato, Katharine Hepburn, a única que tentará mantê-lo resistente à modelagem da máquina política, que tende a absorver a autenticidade de um homem. .Nos bastidores do ano de rodagem de State of the Union, 1947, o ambiente de caça às bruxas e aspereza partidária em Hollywood estavam ao rubro, o que fez com que na noite de estreia, perante a reserva de um camarote para o presidente Harry S. Truman (algumas vezes referido no filme), Capra ficasse uma pilha de nervos: “É inútil descrever os calafrios que me causava aquela situação em que era forçado a dar as boas-vindas ao presidente dos Estados Unidos a uma sátira política que desmascarava, uma por uma, todas as promessas feitas pelos políticos”, escreveu na autobiografia O Nome Acima do Título. Mal imaginava o realizador assustado que Truman, não só adoraria o filme, como pediria uma cópia aos estúdios MGM para o rever uma e outra vez. .De Lincoln a Betty Boop.Não sendo sobre um candidato real, State of the Union espelha ainda assim uma cultura hollywoodesca ansiosa com a imagem humana dos líderes políticos americanos. Desde o primeiro filme sonoro de D.W. Griffith, Abraham Lincoln (1930), até LBJ (2016), esse resgate que Rob Reiner tentou fazer da imagem histórica de Lyndon B. Johnson, com Woody Harrelson em modo boneco, passando por Wilson (1944), de Henry King, o retrato biográfico do 28º presidente, Woodrow Wilson, foram e continuam a ser muitos os realizadores que sentem um “chamamento” para a crónica dos corredores da Casa Branca. Poucos, no entanto, se comparam a Oliver Stone, que para além do fundamental JFK (1991), assinou Nixon (1995), um olhar sobre o percurso do 37.º presidente (o primeiro e único a renunciar ao cargo), na interpretação de Anthony Hopkins, e W. (2008), um perfil de George W. Bush em tom cómico, com Josh Brolin a assumir a incumbência da humanização. .Lincoln (2012): a silhueta da perseverança cansada..Qual o presidente mais retratado no cinema? Sem dúvida, Abraham Lincoln, pedra angular do idealismo político americano. Junta-se então ao filme de Griffith, com quase uma década de distância, o magnífico A Grande Esperança (1939), de John Ford, sobre um jovem advogado (Henry Fonda) cuja dignidade promissora se revela na arena do tribunal; O Libertador (1940), de John Cromwell, ainda centrado na respeitabilidade que Lincoln ganhou antes de assumir o cargo mais alto da nação; e claro, Lincoln (2012), de Steven Spielberg, que acompanha os quatro derradeiros meses da sua vida, a trabalhar para a aprovação da 13.ª Emenda à Constituição, pela Câmara dos Representantes, que resultaria na medida magna da abolição da escravatura nos EUA. Um filme em que a silhueta de Daniel Day-Lewis (vencedor do Óscar pelo papel) recorta a luz dos quartos como um símbolo de perseverança cansada. .Nestas voltas do grande ecrã, até Betty Boop hipnotizou uma multidão na curta-metragem Betty Boop for President, de 1932, onde reúne aos seus atributos físicos as promessas de dinheiro, beijinhos e uma série de ações irrealizáveis, deitando por terra as hipóteses do candidato Mr. Nobody (Sr. Ninguém), que prometia apenas cuidar e proteger todos os americanos. Distorções à parte, neste cenário animado há uma mulher eleita presidente dos Estados Unidos. Quando é que a realidade imita a ficção?