Heróis, anti-heróis e casos de Cannes 2019

Festival de Cannes, que terminou no sábado, mostrou este ano que o cinema de autor está mais vivo do que nunca. Quentin Tarantino, mesmo sem prémio no palmarés, Bong Joon Ho e Antonio Banderas foram as figuras centrais.

São estes os vencedores e derrotados de uma edição histórica de um festival que mostra que o cinema de autor está mais vivo do que nunca. Quentin Tarantino, mesmo sem prémio no palmarés, Bong Joon Ho e Antonio Banderas foram as figuras centrais do festival que ontem terminou.

A surpreendente Palma

Chegou da Coreia aquele que é a grande surpresa do festival. Um filme do realizador de The Host- A Criatura volta a surpreender com a história de uma família pobre de Seoul que enceta um plano para invadir literalmente a casa de um casal abastado. Pesadelo social com sintomas do mal-estar coreano, Parasite é um filme de terror na ordem do sagrado e com conceitos narrativos tão tensos como sufocantes. Melhor filme do festival, ponto final.

Portugueses - atores, já agora..

Se o maior festival do mundo por vezes é acusado de celebrar em demasia os autores e colocar em segundo lugar os atores, este ano a participação portuguesa em Cannes tem as suas pistas mais entusiasmantes nos atores, a começar na obra que venceu o Un Certain Regard, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Ainouz, melodrama tropical no Rio de Janeiro dos anos 1950. Dois dos seus atores são portugueses, Flávia Gusmão e António Fonseca. Ainouz não se cansou de elogiar Flávia e António no almoço para a imprensa do Un Certain Regard.

Mas a interpretação mais forte é a de Rita Martins, em Dia de Festa, curta-metragem belíssima que iluminou a Semana da Crítica. O seu olhar de mãe derrotada é um dos presentes deste festival.

Na Quinzena dos Realizadores, outros dos vencedores, Une Fille Facile, de Rebecca Zlotowski - prémio Melhor Filme Francês - tem ainda um Nuno Lopes irrepreensível. Perfeito igualmente a cantar no seu violão e com notável sotaque brasileiro.

E o que dizer de Carloto Cotta, ao lado de Isabelle Huppert, em Frankie? O ator é notável a fazer muito com um pequeno papel.

Tarantino - perdedor ganhador

As duas maiores estrelas do cinema americano, Brad Pitt e Leonardo DiCaprio, e o seu realizador mais iconoclasta. Era uma Vez...em Hollywood, de Quentin Tarantino, esteve longe de provocar consensos, mas foi o filme mais falado e comentado do festival. Não venceu nenhum prémio mas sai de Cannes com aura de vencedor...

A tal carta de amor à Los Angeles dos westerns televisivos dos anos 50/60 é sobretudo uma prova da arte de escrita do realizador.

A conferência de imprensa ficou viral pela resposta irada à jornalista do The New York Times que insinuou misogenia do realizador. Mas foi o mesmo Tarantino a responder com alegria e galvanização à pergunta do DN. Ficou no ar ainda a hipótese do filme poder ir à sala de montagem antes da sua estreia no verão.

O caso Kechiche

Um filme de 3 horas e meia quase todo dentro de uma discoteca com tecno dos anos 1990 aos berros e uma cena de sexo oral explícita. Mektoub, My Love - Intermezzo, de Kechiche, acabou por ser o filme-maldito de Cannes 2019. Uma experiência sensual e de "performance" cinematográfica que irritou os mais puritanos. Mas também o próprio realizador acabou por se irritar na conferência de imprensa.

Foi também o único filme onde se ouviram assobios na sessão de gala... A ausência no Palmarés pode trazer-lhe problemas na distribuição internacional.

Willem Dafoe, o omnipresente

Dois filmes, dois papelões. Após duas nomeações consecutivas para os Óscares, Willem Dafoe mantém o pé no acelerador e é de novo brilhante em The Lighthouse, de Robert Eggers, vencedor do prémio do crítica e em Tomasso, de Abel Ferrara, onde basicamente é...Abel Ferrara. Dafoe é ator para todos os desafios.

Por aqui, a imprensa americana já escreveu que pode voltar a ser nomeado ao Óscar pelo seu faroleiro bêbado de The Lighthouse.

O príncipe das desilusões: Xavier Dolan

Não há muitos anos, Cannes era o seu festival-talismã. Xavier Dolan, jovem ator e realizador conseguia ser sempre premiado. O ano passado, com The Death and Life of John F. Donovan, no Festival de Toronto, as coisas correram-lhe mal. De menino querido a patinho feio vai um passo e agora com este regresso ao Québec, estampa-se mais uma vez. Matthias et Maxime, retrato de amigos com uma paixão gay no centro, foi o mais entediante dos filmes a concurso. Na lista das guerras das estrelas de muitas publicações internacionais acabou mesmo por ser chacinado...

A vitória do cinema francês

Uma leva nova de cinema francês, tão diverso como particular. A seleção de 8 filmes (onde se inclui por razões de produção o grande filme dos Dardenne, Le Jeune Ahmed) era um risco. Um risco que acabou por dar frutos. A arte de thriller social de Ladj Ly em Les Miserables foi um triunfo (venceu o Prémio Especial do Júri) e o romanesco lésbico de Céline Sciamma foi bastante aplaudido (venceu o melhor argumento).

Mesmo tendo dividido a imprensa, Atlantique, de Mati Diop, crónica zombie sobre refugiados no Senegal, é quem mais lucrou: Grand Prix, contra tudo e contra todos.

Sybil, comédia dramática de Justine Triet, também mostrou que tem pedalada de competição principal.

Delon e Stallone

Alain Delon recebeu a Palma de homenagem numa cerimónia em sua honra. Surgiram lágrimas e uma ovação que fica para a história. Thierry Frémaux, o diretor do festival, assumiu que Cannes estará sempre do lado dos artistas. Palavras para responder a uma certa onde de protestos de feministas que alegam que o ator francês abusou de muitas mulheres no passado.

Mas a homenagem mais mediática acabou por ser a Sylvester Stallone, finalmente consagrado num festival sério. O realizador e ator aproveitou para mostrar cenas do seu próximo filme, Rambo V. Cannes não tem medo dos preconceitos...

Joana Vicente mostrou-se na praia

Cannes, no mercado, é também uma montra dos festivais. Toronto, Locarno e Berlim foram festivais que estiveram com alguma visibilidade por aqui, sobretudo porque estão em renovação com novos diretores artísticos. Na Plage des Palmes, num evento ao final da tarde, Joana Vicente, a portuguesa que assume a direção do renovado Festival de Toronto, recebeu a imprensa e cineastas. Foi curioso perceber que há muitos filmes portugueses em consideração para setembro...

Almodóvar, o eterno adiado

Ainda não foi desta que o espanhol venceu a Palma com Dor e Glória. Almodóvar apresentou nesta 72ª edição de Cannes uma das suas obras-primas, um exame autobiográfico onde disserta em modelo "almodrama" sobre a sua arte através de um espelho de um realizador que olha para a sua infância e tenta sair de uma dependência de drogas e álcool. O júri comandado por Alejandro Iñarritu não soube premiar a precisão desta confissão.

António Banderas ou a redenção de Almodóvar

Venceu sem margem para dúvidas o prémio de interpretação em Dor e Glória. Antonio Banderas, nos agradecimentos soube ter coragem de dizer que esta personagem é realmente o seu grande mentor Almodóvar. Mas também disse que está a viver a glória com este papel. Banderas é fulminante na contenção, logo ele que costuma a ser um ator tão expansivo. A partir de agora, Banderas eleva-se para um outro panteão...

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