Guadalupe Nettel
Guadalupe NettelCarlos Pimentel

Guadalupe Nettel: “As vidas das mulheres também merecem ser contadas”

No centro das histórias que Guadalupe Nettel nos conta no romance 'A Filha Única' estão três mulheres, com as suas dúvidas, perplexidade e medos. Nascida no México em 1973, a autora obteve grande sucesso no seu país com este livro, que não receia questionar vários tabus da sociedade contemporânea.
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Há muito que sabemos que todo o corpo humano é território político, mas, nos últimos tempos, essa realidade tem-nos sido lembrada com alarmante acuidade. Sobretudo se o corpo é de mulher e é visto como um peão no xadrez da Demografia. Em A Filha Única, finalista do Prémio Booker Prize Internacional, com mais de 20 edições no México, país natal da autora, Guadalupe Nettel conta-nos as histórias de três mulheres (Alina, Laura e Doris) que vivem a maternidade em situações difíceis, com muitas dúvidas e interrogações. Sobre elas, e sobre o livro em que “vivem”, escreveu Annie Ernaux, Nobel da Literatura em 2022: “Em A Filha Única, Guadalupe Nettel retrata com grande veracidade a vida tal como a encontramos no dia-a-dia, levando-nos ao coração das únicas coisas que realmente importam: a vida, a morte e as nossas relações com os outros.”Guadalupe, autora de vários livros, é diretora da Revista da Universidade do México e colabora com publicações como Granta, The New York Times, El Pais ou La Repubblica

Neste livro conta as histórias de três mulheres, que têm em comum maneiras diferenciadas de viver a maternidade. Ainda é um tabu não ser uma mãe perfeita, o que quer que isso seja, ou, pura e simplesmente, não querer ter filhos?
Inicialmente eu só queria escrever a história de uma minha amiga, e da sua maternidade tão complicada, mas, ao longo do processo de escrita, apareceram outros temas que estão, de alguma forma relacionados. Como as perguntas que fazemos a nós próprias e dificilmente verbalizamos, Eu própria sou mãe e há momentos em que me pergunto: E se eu não tivesse seguido este caminho? Ou ainda: Será que fui mãe para cumprir as expectativas da minha família e da sociedade? As mulheres que decidem não ter filhos sempre foram muito pouco representadas na literatura, e quando o são, são associadas a um certo juízo de valor por parte do autor. É porque têm um trauma, não podem ou porque são egoístas. Mas, na verdade, se pensarmos bem, façam o que fizerem das suas vidas, as mulheres são sempre julgadas. Ou é porque se divorciam, ou porque têm muitos namorados ou porque não têm nenhum, ou porque preferem outras mulheres. Temos de saber prosseguir, mesmo sabendo que é assim, não nos podemos deixar inibir. Mas também é importante que falemos disso.

Mas só agora é que o fazemos.
Quando a Annie Ernaux (Prémio Nobel da Literatura, 2022) esteve no México, tivemos ocasião de falar e ela disse-me que quando publicou A Mulher Gelada, a crítica a tratou muito mal, dizendo que era um livro que não interessava nada porque “apenas” falava de assuntos de senhoras.

Ainda se fala de literatura dita de mulheres, como um género à parte, que não interessa ao resto da sociedade? Como se as mulheres fossem um país à parte?
Sim, totalmente. No livro há uma cena em que a Laura e a amiga vão ao cinema para ver um filme integrado num ciclo de filmes de mulheres. Como se fosse um género à parte, tipo filmes de terror ou film noir. Ou oriundos de outro país, efetivamente. E, no entanto, estamos a falar de mais de metade da humanidade. Ainda assim, eu estou otimista e sinto que essa perceção está a mudar um pouco.

Como decidiu contar a história da sua amiga, que é uma história muito dura de maternidade?
É uma história dura, que começa logo com a falta de um diagnóstico preciso e concreto sobre o mal que afeta a criança desde a gestação. Mas o que me inspirou realmente foi o modo como a minha amiga reagiu à desgraça. Isso, sim, eu quis partilhar com os outros, É muito inteligente o que ela fez e isso deve ser contado. Tentei pôr-me no seu lugar e, em determinado momento, tive de encontrar válvulas de escape para mim mesma, porque é uma realidade de chumbo. Foi, assim, que nasceu a ficção sobre as outras duas personagens femininas desta história, Laura e Doris.

Uma das suas personagens é uma jovem que quer ser muito independente, viajar pelo mundo, em vez de ser mãe. E hesita, e tem dúvidas. Para os homens, essa escolha não é tão dramática?
Em algum momento da história, decidiu-se que todo o peso de continuidade da espécie deveria recair sobre as mulheres, fazendo da maternidade a razão da existência de cada uma de nós. No último século, as feministas têm vindo a lutar para que não seja assim. Houve momentos em que se cortou com este modelo; foi o caso da Primeira Guerra Mundial, quando as mulheres foram ocupar os lugares dos homens nas fábricas. Quando terminou a Guerra, elas foram obrigadas a deixar os seus trabalhos para os homens que tinham sido desmobilizados e persuadidas a voltar ao lar e a gerar novos filhos, capazes de compensar o desequilíbrio demográfico gerado pela mortandade do conflito.


Esse tipo de argumentação volta a ser uma bandeira da extrema-direita, como se viu recentemente em Portugal.
Porque sempre que as mulheres conquistam algum terreno, haverá quem no-lo queira retirar e obrigar-nos a voltar à nossa domesticidade. E ressurge a narrativa de que esta é a nossa função no mundo. É o que está a acontecer nos Estados Unidos, que era um país em que já se tinha conquistado tantos para as mulheres. No meio literário, ainda há ainda o preconceito de que se escreves sobre mulheres é porque te dedicas à literatura cor-de-rosa e comercial. Mas este livro, o primeiro que dedico ao tema, fi-lo com toda a consciência do mundo porque as mulheres também têm vidas interessantes. Escrevi-o numa época muito importante, porque, no México, havia rios e rios de mulheres a lutar pelo fim do autêntico feminicídio que é a violência de género. Ao mesmo tempo, na Argentina discutia-se ainda a despenalização do aborto.. Acredito que a maternidade está no cerne destas questões porque é com esse argumento que nos querem devolver a casa. Quando nos negam o direito ao aborto, negam-nos o direito a decidir obre o nosso corpo. Imagine-se uma mulher que engravida na sequência de uma violação. Ela nunca mais, em nenhum dia do resto da sua vida, poderá esquecer a violência de que foi vítima.


Do que se fala aqui também é de sentimentos contraditórios em relação à maternidade. É outro tabu?
Eu diria que a sociedade alimenta um ideal de maternidade que é quase de santidade. É como se fosse exigido às mulheres que se aproximem do comportamento da Virgem Maria. No entanto, não pedimos aos homens que sejam como o Batman ou Jesus Cristo. Nós somos mais sensatas. Mas o que se faz às mulheres é uma forma de chantagem. E, no entanto, haverá, com certeza, muitas formas de viver a maternidade e a paternidade, com estratégias diferentes conforme os casos.


Também se fala aqui de outro tema muito silenciado, que é a relação dos pais com os filhos com deficiência profunda. Outro tabu?
O tema da incapacidade também é importante porque também é muito silenciado. A minha amiga, que me inspirou, é uma pessoa muito discreta e eu perguntei-lhe se ela achava bem que eu contasse a sua história. Falámos muito. Foi muito interessante perceber que ela tinha tudo muito elaborado até ao nascimento, mas, a partir daí, ela já não tinha a história preparada.

Porque o médico lhe tinha dito que a criança não sobreviveria?
Sim, ela e o marido estavam-se a preparar para esse luto. Mas isso não aconteceu e eles viram-se com uma criança muito doente nos braços, mas viva.

Os pais estão muito sozinhos quando nascem crianças com um grande grau de incapacidade?
Estão. Têm de procurar uma rede de apoio com pessoas que passaram ou estão a passar pelo mesmo. E o que lhes dizem é que eles têm de conhecer quem é esta filha, que se calhar está tão longe do ideal de filho que eles tinham esperado, porque, da mesma maneira, que há um ideal de mãe, também há um ideal de filho. E todos, pais e filhos, temos de viver com o facto desses ideais não serem coisas realistas ou alcançáveis.

Quando vamos ter um novo livro seu?
No México, publiquei, em setembro do ano passado, um livro de contos intitulado Os Divagantes. São oito relatos sobre esta época em que vivemos tão perdidos, sobretudo após a pandemia, que, de algum modo, nos deixou sem norte. O título do livro vem de uma metáfora animal. Os albatrozes são animais com uma vida muito regulada, como era suposto ser a nossa. Nascem, percorrem enormes distâncias porque têm enormes asas que lhes possibilita planar, o que lhes permite voar adormecidos. Têm rotas preestabelecidas e, depois de percorrer quilómetros e quilómetros, voltam ao lugar onde nasceram. Aí escolhem um companheiro, que será o único para toda a vida. São monogâmicos Alguns, no entanto, por alguma circunstância, saem destas normas e fazem outras coisas. Os biólogos chamam-lhes albatrozes divagantes. Todas as personagens destes contos são figuras que, em algum momento das suas vidas, saíram da autoestrada e foram por outro caminho.

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