"Grand Tour". A grande beleza asiática do realizador Miguel Gomes
Num festival que é marcado por aberrações como a cara de monstro de Demi Moore em The Substance, de Coralie Fargeat, pelo corpo cozido e mutilado de Diane Kruger nesse desafiador The Shrouds, de David Cronenberg, ou a perfuração à barriga de Trump em The Apprentice, de Ali Abassi, como reagir à beleza inclassificável das imagens de Grand Tour, ontem em competição no Palais? Talvez fazer como as milhares de pessoas que enchiam a gala: aplaudir com força e ficar tocado pelo brilho nos olhos de Crista Alfaiate, a protagonista. As cerca de duas horas de projeção revelaram uma adesão inabalável a um objeto que não faz concessões às forma mais vigentes do cinema narrativo.
Não há zona de conforto para ninguém
É quase certo estabelecer que Grand Tour é o filme mais “difícil” do festival, aquele que joga com a poética de uma alquimia de imagens e formalismos, entre um ensaio e uma manifestação de performance experimental. A história, situada no começo do século passado, mostra o desencontro de dois noivos ingleses no sudoeste asiático numa série de viagens entre rios, cidades, selva e montanhas. Uma história que é dividida em dois momentos e pontuada com imagens dos nossos dias em vários formatos, como se de uma aventura de cinema se tratasse, mesmo quando sentimos diálogos escritos com a sinfonia da melhor literatura e sempre a fazerem vénia a uma tonificante ambição de abandono. Abandono? Ou se calhar perdição: o noivo quer ficar em “casa”, a selva, a noção de viagem, pela errância, a noiva não quer destruir um ideal romântico de jura.
Não poder agradar a todos
A beleza deste preto & branco que reconstitui um romanesco próprio de 1918 e de uma ideia conceptual da Ásia colonizada é fundamentada em gestos de “mise-en-scène” que são para ser apanhados com generosidade: ficarmos encantados com bolas de sabão, com a elegância de um travelling por entre a noite da selva ou pelo enquadramento do rosto triste de Gonçalo Waddington.
Mas claro que é um filme que vai dividir: a Indiewire diz que é “impenetrável”, enquanto que a Variety vai ao céu e escreve que teve um efeito de cometa e a melhor crítica de Espanha aprova.
Grand Tour pode não ser a obra-prima de Gomes, mas tem uma relação com a transcendência da cultura oriental como nunca se viu num filme de um ocidental. Só isso...
Em Cannes