Antes de Viva Frida, já tinha escrito quatro livros e uma peça de teatro sobre a artista mexicana, mas diz ter sentido que tinha mais para dizer. O que é que disse nesta obra de diferente? Depois de tantos anos de investigação, o que é que ainda me surpreende em relação a Frida Kahlo? Tudo sobre ela! Na sua biografia, nos seus escritos, nos seus quadros, descubro sempre um aspeto que me era desconhecido, que sem dúvida tinha interpretado mal, uma pergunta à espera de resposta. Foi o meu amigo Carlos Fuentes que me apresentou a mulher que ele dizia ser como Coatlicue, a deusa mãe, ou Tlazoltéotl, a deusa da pureza e da impureza: Frida Kahlo. A partir desse momento, Frida nunca mais saiu da minha vida. Por isso quis mergulhar no seu mundo, depois de já ter escrito tanto sobre ela... Sempre me interessei por pessoas feridas, marginalizadas, amaldiçoadas. É isso que as pessoas criativas fazem. Gosto de escrever sobre pessoas que são conhecidas pelas razões erradas. É o caso de Frida, como Hemingway, a quem acabo de dedicar o meu último livro. Mas eu queria libertar Frida Kahlo da mitologia que a rodeia, dos clichés que constantemente obscurecem a sua verdadeira imagem. .Organizou este livro como uma série de “quadros vivos” em que seguimos Frida na sua vida privada. Porquê esta forma menos tradicional de organizar uma biografia? Viva Frida não é apenas mais uma biografia, nem um ensaio, nem um romance. É tudo isto ao mesmo tempo, porque eu tinha de inaugurar uma nova forma de ver Frida, de me aproximar dela, de tentar apreender a sua realidade. A primeira imagem que me veio à cabeça foi a de uma série de “quadros vivos”. Cada capítulo do meu livro, cujo título se baseia nas palavras de Frida - lidas vezes sem conta no seu diário, na sua correspondência, nas legendas dos seus quadros, entrevistas e declarações - porque são tão importantes para a compreender como os seus quadros, retrata uma mulher artista apaixonada pela liberdade, surpreendida na intimidade da sua vida. Para este livro de viagens, quis escrever da forma mais simples, clara e narrativa possível. Afinal, trata-se de contar histórias que se encaixam para formar um puzzle que cada um pode explorar a seu bel-prazer. No final da viagem, nenhum aspeto da vida e da pintura de Frida terá sido ignorado. Cada quadro corresponde a um momento preciso da vida de Frida. Este é o ponto de vista central deste livro: Frida Kahlo só pintou o que viveu... “Não pinto os meus sonhos, mas a minha vida. Não pinto os meus sonhos, pinto a minha realidade”. .Viva FridaGérard de CortanzePlaneta512 páginas.Frida foi muito mais do que a sua obra artística - foi uma figura dramática, com os seus problemas de saúde, mas uma mulher forte e rebelde, um ícone do inconformismo e da emancipação feminina. Isso explica o seu apelo junto das gerações mais jovens? O famoso acidente de 1925 é fundamental para a compreensão de Frida, porque desse sofrimento infinito nasceu uma Frida nova e autónoma, que estava a transformar o seu desastre em vitória. Talvez ela possa até agradecer ao horror do acidente por lhe ter permitido crescer e encontrar-se a si própria. Um obstáculo necessário, um marco a ultrapassar, que não a matou mas a tornou mais forte. Sim, nasce uma nova Frida, que fará amor com os homens que escolher. Que será insaciável, porque quanto mais fizer amor, mais se sentirá viva e existente. Uma Frida que faz amor com mulheres, porque com quanto mais mulheres fizer amor, mais se sentirá viva e existente. O processo de transmutação será sempre o mesmo. O seu empenhamento político no Partido Comunista faz parte do mesmo processo. Quando saiu para as ruas da Cidade do México à frente de manifestações de protesto, sentiu-se ainda mais viva. Ao envolver-se, viveu ainda mais. Frida gostava de comer, de cozinhar, de beber - bebia como uma esponja -, praguejava como um carroceiro, cantava canções populares que transformou em canções libertinas. Ela vai querer tudo, imediatamente, com impaciência, fúria e alegria total. Ela diz: “Viver é o objetivo central da minha vida”. A sua luta pela vida ressoa hoje como uma palavra de ordem: nunca desistir. .Diego Rivera, seu marido, Trotsky, André Breton - só para dar alguns exemplos -, Frida também esteve envolvida em todas estas amizades/amores com grandes figuras da história.O casal conhecia toda a gente: Henry Ford, Nelson Rockefeller, Dolores del Rio, Paulette Goddard... A intelligentsia de todo o mundo vinha vê-los: Neruda, Breton, Einstein, Maïakovski, Duchamp, Miro, Kandinsky, Picasso. O México desses anos acolheu muitos intelectuais que fugiam do fascismo que proliferava e da guerra na Europa. Muitos foram também atraídos pela Revolução Mexicana, um símbolo de esperança. O marido de Tina Modotti enviou-lhe uma carta da Cidade do México: “Venham cá, todos vós. Aqui tudo é possível! Diego Rivera também tinha uma paixão por aquilo a que hoje chamamos os media. A imprensa sensacionalista aproveitou a vida do seu casal de estrelas. Casos amorosos, cenas domésticas, casos extraconjugais. A partir daí, era Frida e Diego. Múltiplas aventuras de ambos os lados. Cristina, a própria irmã de Frida, Maria Félix, e outros do lado de Diego. Trotsky, Isamu Noguchi, Nickolas Muray, e outros, incluindo mulheres, do lado de Frida. Diego, que aceita a homossexualidade da sua mulher, recusa as suas aventuras heterossexuais. Um dia, aponta uma arma à cabeça de um rival e diz-lhe: “Não quero partilhar a minha escova de dentes com qualquer um!” Mas o essencial é que, entre a paixão e o excesso, se criou uma obra: Frida Kahlo pintou, e isso é o que importa. E enquanto pinta, Frida conta-nos dois segredos: não ouçam Sócrates, não fechem os olhos à fealdade para ver a beleza interior, abram-nos e vejam nascer uma beleza terrível. E mais uma vez: para criar o meu paraíso, tive de recorrer ao meu próprio inferno pessoal. .Gérard de Cortanze©Mathieu Bourgois/opale.photo.No seu livro, encontramos os amantes masculinos e femininos de Frida. Esta liberdade extrema é a prova de que ela estava à frente do seu tempo? No espaço de alguns meses, Frida já não era a mesma pessoa. Desapareceu o medo infantil de não estar à altura, desapareceu o aspeto anémico que a tornava quase patética, desapareceu a falta de confiança em si própria. Que prazer é chocar os presunçosos! É preciso dizer que tem uma voz distinta, profunda, rebelde, pontuada por carcajadas - explosões de riso. Mas isso não basta. Sabemos como a sua aparência é importante para ela. Acabaram-se os sábios trajes germânicos da sua infância e o seu ridículo chapéu de palha com longas fitas a cair pelas costas, demasiado sério, demasiado burguês. Agora usa macacões, fatos de homem ou roupas vistosas que compra nas feiras da ladra. Jóias, ornamentos, acessórios - tudo para dar nas vistas e chamar a atenção. Uma obra de arte em movimento? Um acontecimento permanente? Claro que sim! Para existir, é preciso aparecer. Não esquecer que, nesta sociedade mexicana tão machista, é tão difícil existir quando se é mulher, e ainda mais uma mulher pintora, uma artista criativa cujo marido é um monstro sagrado. A arte de Frida está em todo o lado. O seu vestuário, as suas posturas, a sua maneira de ser, são todos uma extensão da sua pesquisa interior e artística. O envelope era tão importante como o conteúdo, e o que era mostrado era tão vital como o que estava escondido. .Frida tem uma estética muito particular - a sobrancelha única, as flores no cabelo. É um ícone pop? É verdade que a Casa Azul se tornou um museu em 1958, mas só nos anos 80 é que a Europa voltou a ter acesso à sua obra. A Fridomania, que começou nos Estados Unidos nos anos 70, demorou algum tempo a atravessar os oceanos. Atualmente, não há um único dia em que uma exposição de Frida Kahlo não atraia dezenas de milhares de visitantes. Alguns chegam mesmo a escrever que ela “nunca esteve tão na moda”. T-shirts, tequila, verniz para as unhas, ímanes para o frigorífico, malas, vasos para cactos, capas para telemóveis, etc. Frida Kahlo vende. As provas acumulam-se: a marca americana Ultra Beauty lança uma linha de maquilhagem com a imagem da artista, a plataforma Google Arts & Culture inaugura uma exposição interactiva online dedicada a Frida, e a hasthag #FridaKahlo conta com mais de três milhões de publicações, a que se juntam os trinta e sete milhões de resultados obtidos no Google. Frida tornou-se um “vetor de marketing”. Em todo o mundo, mas também no México. Esta “mercantilização” da imagem de Frida Kahlo prejudica a sua memória? De forma alguma. Judy Chicago, artista e académica feminista americana, coloca uma questão à qual responde afirmativamente: “Será que a apropriação trivial da imagem de Frida Kahlo destrói o poderoso impacto da sua obra”? Numa palavra, a imagem inconformista, extraordinária e anormal de Frida está a tornar-se um estereótipo? Penso que não. Frida pode ter-se tornado um ícone, mas não perdeu nada da sua substância original. Não será necessária uma dose invulgar de originalidade, força e indestrutibilidade para resistir a todos os produtos derivados da fonte inesgotável que é Frida Kahlo? A passagem ao mito conduz sempre a uma distorção da realidade, a uma diminuição, a uma banalização. Fascina-me o número de raparigas adolescentes que compram os meus livros sobre Frida Kahlo. No meu romance Os Amantes de Coyoacán, que narra a tórrida paixão de curta duração entre Leon Trotsky e Frida Kahlo, o que interessa a estas jovens não é o criador do Exército Vermelho, mas sim Frida, o que ela pensa, o que ela vive, os seus compromissos. Para elas, Frida é uma irmã, uma amiga, uma mulher entre mulheres, jovem, frágil, com sangue índio, em constante busca de autonomia financeira e sexual, que ama homens e mulheres. Esta é a grande contemporaneidade de Frida. A obra está aí, indestrutível, inatacável. A sua grande força reside na sua capacidade de resistir a esta banalização excessiva. A prova da sua grandeza: Frida nunca é sobre as aparências, mas sobre a dualidade. Durante toda a sua vida, a Frida morta lutou contra a Frida viva.