Nine d’Urso, uma George Sand pronta para a "cavalgada" parisiense.
Nine d’Urso, uma George Sand pronta para a "cavalgada" parisiense.Jean-Philippe BALTEL

George Sand, a mulher que escreveu e viveu perigosamente

Minissérie em estreia hoje nos Canais TVCine, George Sand: Espírito Rebelde retrata o desejo e a concretização da liberdade na mulher que se tornou a grande feminista das letras do século XIX.
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É desse tempo que me recordo com mais satisfação. Apraz-me encontrar aí aquela juventude de espírito e de coração que a injustiça dos homens e do destino não conseguira ainda murchar”. De que tempo fala George Sand (1804-1876) nestas palavras vertidas no seu Diário Íntimo? Do início da idade adulta, mas também, vagamente, da época em que a escrita começava a insinuar-se-lhe como arma intelectual, em que o chamamento de Paris se traduzia numa vontade indomável de agitar as estruturas de uma sociedade desigual entre homens e mulheres, e em que a separação de um marido violento se afirmava como um ato inspirador para outras esposas do século XIX, quando o divórcio não era mais do que uma miragem nos termos da lei.

É, pois, para esse tempo que nos envia a minissérie George Sand: Espírito Rebelde (no original, La Rebelle: Les Aventures de la Jeune George Sand), em estreia esta segunda-feira (22h10) no TVCine Edition e TVCine+. Um retrato da baronesa Aurore Dupin, nome de batismo, casada com um desprezível Casimir Dudevant - marido abusivo com quem teve dois filhos -, que um dia fez as malas e partiu para a cena literária parisiense, trocando a submissão conjugal pela liberdade da pena e do corpo...

Dentro da boa tradição televisiva e cultural francesa, George Sand: Espírito Rebelde surge como um drama consistente no resumo da personalidade por trás de obras como La Petite Fadette e Ela e Ele (este editado em Portugal pela Sibila). Alguém que dizia, e confirmava-se, não viver como os outros: “Sou mais sensível do que aquele, mais dinâmica do que aqueloutro. Estudei mais determinado assunto do que fulano, vivi mais em menos tempo do que sicrano”, refere no tal Diário Íntimo (edição Antígona, tradução de Carla da Silva Pereira), onde divaga ainda sobre a origem da sua paixão pela literatura. “Demasiado excitada para me contentar com o que me oferecia a vida real, demasiado ousada ou demasiado lúcida para me render ao encanto das crenças supersticiosas, debatia-me dolorosamente. Eu agia em conformidade com as ilusões do meu cérebro, com os impulsos do meu coração.”

Do êxito e do escândalo

Eis então a jovem George Sand, figura maior do Romantismo francês, que vamos descobrir numa interpretação ágil de Nine d’Urso, qual poço de vivacidade e bravura, com ânsias de viver perigosamente e assim alimentar a escrita. No primeiro dos quatro episódios, ambientado no ano de 1831, vemo-la ainda em Nohant, na casa onde vive com Dudevant e os filhos, e onde as suas impetuosas cavalgadas deixam adivinhar uma atitude contrária ao recato. Enfim: depois de já não ser possível escrever em paz no quarto, Aurore Dupin foge com um romancista ainda mais jovem do que ela, Jules Sandeau, para a cidade que estará pronta a receber a sua primeira obra de ficção - e primeiro sucesso literário -, Indiana, para além do pseudónimo masculino e das vestes de gentleman com que passa a frequentar os cafés e a nata das letras parisienses.

Assinada por Georges-Marc Benamou, que não é estranho aos temas e personagens da cultura francesa (escreveu, por exemplo, o telefilme Les Vies d’Albert Camus e a minissérie As Aventuras do Jovem Voltaire, esta última exibida pela RTP2), George Sand: Espírito Rebelde apresenta o drama de época como uma narrativa ao mesmo tempo sedutora e didática, que tanto contempla os encontros simpáticos e bonacheirões com Honoré de Balzac como as linhas gerais da paixão de Sand e Alfred de Musset, que muita matéria deu à literatura de ambas as partes. Sem esquecer aqui o breve caso amoroso que a escritora teve também com a atriz Marie Dorval, motivo de escândalo numa altura em que o nome George Sand ganhava notoriedade, não apenas junto dos leitores (em grande parte mulheres, pela argumentação que dava à causa feminista), mas igualmente na esfera dos grandes escritores.

No fundo, trata-se de conhecer um capítulo intenso da juventude, por vezes confundida com uma fase de simples provocação (nada mais errado perante os indícios da sua crença genuína numa “vida de escolha, uma sociedade afável, elegante, esclarecida, onde os seres dotados de algum mérito podiam ser acolhidos e trocar opiniões e ideias”). Seguimos as aventuras da mulher que desafiou as normas sociais ao ponto de se permitir a uma virtual mudança de sexo, na defesa explícita da igualdade de género, que inclui o direito à vida boémia tal como experienciada pelos homens.

De resto, o quarto e último episódio versa sobre o processo judicial que libertou George Sand da instituição do casamento, numa espécie de vitória emblemática para quem “lutou contra o seu século”. Palavras dela ao amigo e ilustre crítico literário Charles Augustin Sainte-Beuve.

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