Gatos como nós
Ele inventou um estilo de gato, uma sociedade de gatos, todo um mundo de gatos. Gatos ingleses que não se pareçam e não vivam como os gatos de Louis Wain têm vergonha de si mesmos." Quem o declarou foi o escritor H.G. Wells, que no filme de Will Sharpe tem o rosto e a voz de Nick Cave. Os gatos de que se fala vestem como a alta sociedade, fumam, leem jornais, vão ao teatro, tocam vários instrumentos, jogam críquete e às cartas, tomam chá e sabe-se lá mais o quê. Basta um simples clique e damos com inúmeros destes desenhos online, que ao longo do tempo foram reproduzidos em postais e livros infantis sem que o nome de Louis Wain (1860-1939) nos diga grande coisa. Isso acontece porque o homem por trás desses desenhos começou por não cuidar dos direitos de autor e a sua fama foi relativamente efémera.
Vale a pena esclarecer, desde já, que o título português A Vida Extraordinária de Louis Wain é um equívoco. A personagem sobre a qual o filme se debruça e se configura teve uma vida triste, mas possível de abordar pelo lado do encanto e da beleza que experienciou por um pequeno período. No original The Electrical Life of Louis Wain está, sim, a essência do que aqui se retrata: a vida daquele que viu na eletricidade o mistério do transporte no tempo e a preservação de memórias. A idiossincrasia do olhar de Sharpe acaba por ser o modo como capta essa obsessão de Wain em manter na sua existência a luminosidade da memória da esposa a partir das ditas ilustrações de jornal que lhe deram notoriedade. Como diz a narradora (Olivia Colman) a certa altura, a efervescência criativa de Wain estava em relação direta com a dor.
Na interpretação de Benedict Cumberbatch, com centelha de génio, Louis Wain é uma personalidade fascinante, cândida, polímata e com uma mente vulnerável a tempestades interiores (a medicina de hoje atribui-lhe um quadro de esquizofrenia). A sua postura "elétrica" enquanto jovem que tenta sustentar a casa vitoriana onde vive com cinco irmãs e a mãe inválida dá à primeira parte do filme a gentileza de uma comédia de costumes. Mas quando aparece Emily (Claire Foy, maravilhosa), a precetora das irmãs por quem ele se apaixona, a linguagem visual de Sharpe ajusta-se ao romantismo destes dois outsiders que, uma vez casados, têm a ousadia excêntrica (para a época) de adotar um gato - o gato chamado Peter que Wain desenha para animar a esposa, ciente de que o cancro a levará em breve.
Will Sharpe, realizador que conhecemos pela minissérie Landscapers, prova mais uma vez ter sensibilidade afinada para os fenómenos coloridos da mente. The Electrical Life of Louis Wain evolui tal como os desenhos dele, que se foram tornando cada vez mais psicadélicos. E nesse percurso moldado pela contradição entre o luto e a beleza Sharpe encontra a nota certa de devaneio e graciosidade que torna a descoberta desta biografia tão comovente. É daqueles casos raros em que o biopic assume o seu próprio idioma, na justa compreensão da personagem, sem reservas de charme na hora de explorar o imaginário doce de um espírito atormentado. O Wain de Cumberbatch é todo um projeto de amor.
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