Celebrizou-o a voz de veludo, “feita” à medida de canções românticas que foram grandes sucessos de público como Olhos Castanhos, Eu e Tu ou Recado a Lisboa (com letra de João Villaret e cujo verso Passa por mim no Rossio inspirou a Filipe La Féria o título de um espetáculo), mas nem por isso se esquivou aos confrontos que a vida lhe exigiu. Falamos de Francisco José, nome grande da canção em Portugal e também no Brasil, nascido na Rua da Cal Branca, em Évora, e que esta sexta-feira faria 100 anos (morreu a 31 de julho de 1988, aos 63 anos, vítima de acidente cardiovascular)..António Galopim de Carvalho, que o público conhece como incansável defensor da preservação dos vestígios de dinossauros em território português, irmão mais novo de Francisco José, recorda ao DN como a carreira musical deste se começou a desenhar ainda na adolescência, na cidade natal de ambos..“Ainda usava o nome de Chico Carvalho e participava em muitas récitas do liceu ou em espetáculos no Teatro Garcia de Resende. Lembro-me sobretudo de uma revista de temática alentejana, intitulada Palhas e Moínhas, de João Vasconcelos e Sá, avô do fadista António Pinto Basto. Devíamos estar em 1939.”.Menino e moço, o aspirante a cantor rumou a Lisboa. Levava o objetivo de estudar Engenharia Civil, inscreveu-se na Faculdade de Ciências, mas o talento foi-lhe notado e, em breve, Francisco José frequentava o Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional, lugar sonhado por tantos numa época em que a rádio tinha o poder de fabricar “estrelas”..As solicitações artísticas foram tantas que a licenciatura em Engenharia foi interrompida no 3.º ano, tal como o primeiro emprego, como experimentador no Laboratório Nacional de Engenharia Civil..Em 1979, em entrevista ao DN, Francisco José recordava a importância que os primeiros ensinamentos de Mota Pereira, responsável pelo referido centro de preparação, assumiram no desenrolar do seu futuro. “Ele disse-me: Você sabe que tem na sua frente um microfone (jamais tinha cantado para um microfone) e pode cantar com intimismo, como ao ouvido de uma mulher. Cançonetista já você é, terá de cantar como um Bing Crosby ou um Sinatra.”.O rapaz, que até aí aspirava a seguir os exemplos de vozes mais operáticas como as de Luís Piçarra ou Alberto Ribeiro, adota as lições do mestre e obtém grande sucesso como “estrela” de rádio em programas de vasta audiência, como os espetáculos da APA ou o Comboio das Seis e Meia. Ainda não tem repertório próprio, mas já conquista corações com a interpretação de boleros, então muito em voga, ou canções de amor celebrizadas por Edith Piaf ou Frank Sinatra..Em 1951, deslocou-se a Espanha para gravar o primeiro disco em 78 rotações. O título? Olhos Castanhos (com letra e música de Alves Coelho “filho”, o compositor mais influente nesta fase da sua carreira), que se tornou no seu maior sucesso, em Portugal e fora dele. Seguiram-se novos temas, também assinados por Alves Coelho como Quatro Palavras, Como É Bom Gostar de Alguém ou Sou Louco Por Ti. Todos com grande sucesso de vendas de discos e muitas passagens na rádio..Arquivo DNFrancisco José também construiu uma carreira de grande sucesso no Brasil, onde passou mais de 25 anos. Só o disco Olhos Castanhos vendeu mais de um milhão de exemplares..O assédio das fãs era constante. Com humor, Galopim de Carvalho recorda que uma delas, mais atrevida, terá dito (ou escrito) ao irmão que “se sentia grávida, de cada vez que o ouvia”. Tamanha popularidade não tinha, no entanto, correspondência na retribuição financeira dos artistas e, perante a persistente escassez, Francisco José ruma a terras brasileiras, onde, ao longo dos anos, se torna o cantor português mais reconhecido depois de Amália Rodrigues. Aí permaneceria quase ininterruptamente durante mais de 25 anos..No Brasil, grava os álbuns Francisco José e as Músicas Que Ninguém Esquece, Sucessos de Portugal Nº 2 , Sucessos de Portugal Nº 3 e Francisco José e os Sucessos de Ouro da Música Romântica Brasileira, onde canta temas de Tom Jobim, Dolores Duran ou Vinicius de Moraes. Atuou para as comunidades portuguesas e em várias emissoras de rádio e televisão - Tupi, TV Rio e Continental -, onde protagonizou o programa Figura de Francisco José, uma experiência que considerou decisiva para o seu reconhecimento naquele país..Mas a suavidade do timbre não correspondia a um temperamento dócil. A ditadura do Estado Novo não merecia a sua simpatia ou anuência, como teve ocasião de mostrar em direto, na RTP, numa das suas vindas a Portugal. Estava-se a 21 de julho de 1964 e o programa de variedades, transmitido em direto, chamava-se TV Clube. Francisco José cantou alguns temas do seu repertório, conforme o previsto, mas decidiu fazer uma pausa para dizer duas ou três coisas ao espectador..Antes de mais que os artistas portugueses, entre os quais ele próprio, lutavam tenazmente no Brasil para mostrar o melhor da música portuguesa. O problema é que o país não reconhecia tal esforço e a RTP não lhes oferecia retribuição digna, sempre que eles voltavam. Em contrapartida, a mesma estação televisiva, a única existente no país, não se coibia de pagar elevados cachets a intérpretes internacionais, como demonstravam os exemplos recentes de Charles Trenet e Carmen Sevilla. O caso não era para menos: Francisco José recebera quatro contos (ou 4000 escudos) enquanto a cantora espanhola, por exemplo, recebera… 25 vezes mais..Num país formatado pela censura e pelo medo, tal coragem era inédita. A emissão foi cortada, o locutor de continuidade, Jorge Alves, desfez-se em desculpas pelo inusitado acontecimento, mas a mensagem chegara aos espetadores. Nessa mesma noite, uma multidão de admiradores acorreu à porta do restaurante Chicote, em Lisboa, onde Francisco José iria atuar, para o aplaudir. Empolgado, ele veio à varanda saudar tão voluntariosos fãs e dedicou-lhes uma canção..Mas, como seria de esperar no Portugal de 1964, o caso não passou sem consequências. Francisco José foi alvo de um processo por injúria e difamação movido pela RTP, de que seria ilibado, mas, como nos conta Galopim de Carvalho, “manter-se-ia a obrigação de se apresentar à PIDE, sempre que vinha a Portugal.” Do mesmo modo, ficaria proibido de atuar em qualquer programa da RTP, nos 16 anos seguinte..Quando finalmente lhe foi permitido regressar ao Brasil (as autoridades portuguesas tinham-lhe retirado o passaporte enquanto decorria o processo), Francisco José tinha à sua espera a carreira consolidada que soubera construir, sobretudo depois da venda de um milhão de discos de Olhos Castanhos naquele país. A sua Adega de Évora, que dirigia em colaboração com um irmão, era um dos restaurantes mais badalados no Rio de Janeiro..Em 1967, gravou um soneto de Luís de Camões com música sua, até que no início da nova década volta a focar-se no mercado português. Grava Guitarra Toca Baixinho (versão sua de um tema do italiano Nicola di Bari) que, em 1973, lhe vale o regresso aos grandes sucessos no seu próprio país..Com o 25 de Abril, o cantor assumiu alguma intervenção política, tendo sido candidato a deputado pelo Partido Socialista, na lista dos deputados do Círculo Fora da Europa. Voltaria a Portugal, de forma definitiva, já na década de 1980, ocasião que aproveita para se licenciar em Matemática..Um gosto antigo, como recorda o irmão, António Galopim de Carvalho: “Apesar da sua carreira muito intensa, nunca deixou de ler muito e de se interessar por áreas com um forte pendor abstrato, como a Matemática ou a Filosofia.”.Nos últimos anos de vida, foi mesmo professor de Matemática numa universidade sénior, em Lisboa. Em 1983, gravou um derradeiro disco, intitulado As Crianças Não Querem a Guerra.