Filme-acontecimento de Cannes na reabertura da Cinemateca

A nova temporada da Cinemateca arranca com "O Livro de Imagem", de Jean-Luc Godard, Palma de Ouro especial no último Festival de Cannes
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A Cinemateca Portuguesa está a comemorar 70 anos - e merece todo o nosso apoio, admiração e carinho. Num tempo dominado pela mercantilização galopante do cinema (leia-se: o poder dos "blockbusters") e pela formatação das narrativas audiovisuais (leia-se: o império da telenovela), a instituição da rua Barata Salgueiro, em Lisboa, continua a desenvolver um trabalho militante de conservação do património cinematográfico e de divulgação do cinema de todas as épocas.

Depois da tradicional interrupção da programação durante o mês de Agosto, o mês de Setembro propõe uma sedutora pluralidade, com inevitável destaque para dois ciclos: uma evocação de Rita Hayworth, uma das divas clássicas de Hollywood, assinalando o centenário do seu nascimento; e uma retrospectiva de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, criadores essenciais de um cinema visceralmente moderno, sempre em íntima ligação com o valor primordial da palavra e da escrita.

Em qualquer caso, o primeiro grande destaque vai para a "sessão especial de reabertura" (sábado, dia 1, 21h30) com O Livro de Imagem, de Jean-Luc Godard. Vale a pena recordar que foi, não exactamente "um" acontecimento do último Festival de Cannes, mas sim "o" acontecimento - de tal modo que o júri, presidido por Cate Blanchett, decidiu atribuir-lhe uma Palma de Ouro especial.

O Livro de Imagem pode resumir-se através de um fascinante paradoxo: por um lado, relança alguns dos temas obsessivos de Godard nas últimas décadas, incluindo a terrível herança histórica (e cinematográfica) do Holocausto e a necessidade de reflectirmos sobre as linguagens que usamos para descrever e pensar o mundo à nossa volta; por outro lado, funciona como uma deambulação eminentemente pessoal, porventura confessional, conduzida pela voz cansada, mas sempre precisa, do próprio Godard.

Sendo ele o cineasta desse projecto monumental que é História(s) do Cinema (1988-1998), é com inevitável ironia que relembramos o facto de a defesa do cinema, em Godard, passar pela integração do vídeo e a reinvenção de alguns mecanismos da linguagem televisiva. Nesta perspectiva, talvez se possa dizer que O Livro de Imagem se organiza como um telejornal intimista em que as imagens e os sons servem, em última instância, para colocar duas perguntas - a primeira sobre se ainda sentimos alguma felicidade, a segunda indagando a esperança que cultivamos.

* O Livro de Imagem está adquirido para o mercado português pela distribuidora Midas Filmes, tendo estreia prevista para o mês de Outubro.

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