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Direitos reservadosO romance de Fernando Venâncio dá continuação ao mito de Fradique Mendes. 

Falsear uma biografia pelo prazer literário

Fernando Venâncio publicou em 1999 Os Esquemas de Fradique. Está de volta uma nova edição.
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Conta-se na biografia de Fernando Venâncio que acompanha a nova edição do seu romance Os Esquemas de Fradique que “inaugurou a sua carreira linguística aos dois anos, quando passou do aconchego alentejano para a capital, extasiando-se com os modos de exprimir-se dos lisboetas”. Não se pode deixar de desconfiar dessa precocidade, mesmo quando volta à carga na biografia ao dizer que “aos dez anos, novo êxtase o esperava, agora em Braga, essa herdeira do território criador do idioma, orgulhosa disso até à intolerância”. No entanto, pode-se fazer fé na terceira fase da sua vida neste campo linguístico, ao informar que “quando Portugal se tinha tornado num fascinante mapa de falares, sotaques e soluções gramaticais, vai instalar-se num mundo inteiramente outro, o de língua neerlandesa” É na cidade de Amesterdão que escreverá o romance em causa, publicado em 1999, e que agora regressa às livrarias em nova edição.

O seu último ensaio, Assim Nasceu uma Língua (2019) refletia em muito este percurso de interesses, após ter estudado Filosofia, Teologia e, principalmente, Linguística, momento a partir do qual começa a lecionar em universidades no país para onde foi viver. Não esqueceu, no entanto, as origens e acabou por se doutorar com uma tese sobre a linguagem em Portugal na época de Castilho, bem como a sua recusa em aceitar o Acordo Ortográfico de 1990 e outras modas linguísticas.

Os Esquemas de Fradique tem uma intenção, muito bem conseguida, que é o do regresso a uma geração de personagens portugueses como Eça de Queiroz, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis. Figuras muito esquecidas, a não ser Eça, e que têm no seu passado um momento de criatividade a que Venâncio se agarra para implantar este romance, o de quando o trio decide inventar Fradique Mendes e que Venâncio torna tema deste romance.

Através de uma prosa que interroga essa falsa existência, esse retorno a Fradique Mendes é a aposta para quase duas centenas de páginas, numa espécie de palco e em três atos, em que vai destacar uma brigada de (des)interessados na investigação da possibilidade de tal figura ter existido. Para tal, vai buscar provas e, ao mesmo tempo, desmentir essa tese. Tal como nos romances de Eça de Queiroz, existem figuras que desdenham Fradique, como o personagem Eugénio, bem como várias mulheres que cirandam as hipóteses que Venâncio explora de forma bem humorística e com vários volte-faces. Aliás, o registo do livro leva a que o leitor tenha sempre um sorriso nos lábios, divertindo-se com cenários que fazem lembrar os romances de Eça.

A investigação sobre o passado de Fradique Mendes é oferecida a um jornalista jovem, Martinho da Telha, que se esforça para solucionar a tarefa que lhe é entregue por um alegado avô da figura. Página a página vão-se percorrendo épocas contemporâneas do trio que inventou Fradique Mendes e colocando achas numa atualidade para manter essa fogueira acesa. Diga-se que a história de Fradique Mendes é conhecida, mas este romance consegue pôr no leitor dúvidas – tal como em vários dos seus personagens – sobre se terá existido ou não.

A história refere que Fradique Mendes tem a sua génese num primeiro momento em que Eça de Queiroz, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, lhe dão vida. Decorre dos encontros no Cenáculo e sob a fórmula de um poeta “satânico”, antiburguês e inspirado em Baudelaire. A ousadia do trio vai mais longe e dá-lhe um corpo literário que será publicado no jornal A Revolução de Setembro. Escrevem-lhe também um livro, Poemas do Macadame, e deixa no ar que existe mais obra poética, sob o título Lapidárias, que será publicado posteriormente à sua morte, e que os estudiosos da obra de Eça encontraram no espólio deste.

Não se fica a inspiração poética de Fradique Mendes apenas por Poemas do Macadame e Lapidárias, pois o mesmo Eça de Queiroz, na parceria com Ramalho Ortigão, no folhetim publicado em 1870 no Diário de NotíciasO Mistério da Estrada de Sintra, faz entrar em cena Fradique Mendes e dá-lhe mais vida. Fradique irá ainda ter dimensão existencial em mais Eça de Queiroz, como no livro Correspondência de Fradique Mendes, e Cartas Inéditas de Fradique Mendes. Poderia a invenção Fradique Mendes ter ficado pelo século XIX, mas não foi o que aconteceu, pois em 1997, o escritor angolano José Eduardo Agualusa recupera-o no seu romance Nação Crioula, a investigadora checa Nicole Márfaldi escreverá uma tese sobre o personagem e o cineasta José Barahona recupera-o em O Manuscrito Perdido, entre outras “apropriações” desta figura que se torna mítica.

Voltando à biografia de Fernando Venâncio incluída nesta reedição, à parte em que se diz: “Nunca deixaram de inquietá-lo as formas e as estruturas da sua língua materna, e também os processos históricos delas”. É tudo isto também que encontramos também neste labiríntico Os Esquemas de Fradique, a que não faltam episódios próprios para manter viva a existência de um personagem tão falso historicamente e que só a teimosia da ficção faz superar a realidade. Em boa hora esta reedição.  

OS ESQUEMAS DE FRADIQUE

Fernando Venâncio

Guerra & Paz

190 páginas

Outras novidades literárias 

OS LOUCOS ANOS 1960

Em 1962, o escritor Ken Kesey publicou o romance Voando sobre Um Ninho de Cucos que viria a ser considerado um dos melhores romances em língua inglesa pela revista Time e logo adaptado ao teatro na Broadway, mas foi o filme de Milos Forman que, em 1975, lhe deu uma projeção mundial gigantesca. Agora, no cinquentenário cinematográfico, os leitores portugueses podem voltar ao que o autor chama de os anos psicadélicos da década de 1960 e à experiência que teve num hospital para veteranos, a partir da qual escreveu este seu romance de estreia e no qual faz uma crítica violenta sobre os tratamentos psiquiátricos dessa época a que se sujeitou: “Os doentes deambulavam no corredor”, “a cada quarenta minutos vinham ver se eu estava vivo”… “seis meses após ter concluído os ensaios clínicos com drogas, candidatei-me a um emprego e fui contratado como ajudante de enfermagem”. É esta vivência que lhe deu a matéria-prima para o romance que fez furor.

VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS

Ken Kesey

Livros do Brasil

383 páginas

SOM REGENERADOR

O tema do romance premiado da escritora japonesa Natsu Miyashita é o piano, instrumento que aprendeu a tocar ainda na adolescência. Tudo se altera na vida do protagonista quando escuta um primeiro afinador de pianos, a que se sucederão outros dois, e fica possuído pelos contrastes das melodias, que lhe dão um outro sentido à existência. A povoação em que vive é rodeada por uma floresta, cenário em que muita da história se irá desenvolver. O romance foi um sucesso enorme no Japão e relata a busca da harmonia interior com os desafios do mundo. 

A FLORESTA DE LàE AÇO

Natsu Miyashitac

Presença

199 páginas  

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