ESTREIAS: sexo, mentiras e vídeo
Vemos uma jovem deitada de barriga para baixo na relva à porta de casa, de madrugada. Quando esta acorda e se levanta, percebemos claramente que não sabe a razão de ali se encontrar, num estado degradante e fora de horas. Já na casa de banho, diante do espelho, procura as respostas para o que aconteceu naquela noite que lhe deixou marcas na pele, mas para além de não se lembrar, decide não contar nada a ninguém. Até que, mais tarde nesse dia, lhe chega um vídeo em que se vislumbra o seu corpo deitado no chão, com as calças descaídas, e um grupo de rapazes à volta, divertidos, entre comentários e risadas...
"Coisas como esta acontecem a cada minuto, todos os dias." A frase não é uma estatística de noticiário. Quem a pronuncia, de lábio trémulo, é a mãe de Mandy, a adolescente protagonista de Share (estreia HBO), num diálogo honesto, sussurrado na intimidade do quarto. Uma mãe com o olhar realista que só uma mulher pode ter sobre um aparente caso de violação que, como ela diz, pela parte do pai não pode ser visto da mesma maneira, porque ele nunca esteve desse lado - daí a sua perplexidade de homem. Mas nesta primeira longa-metragem de Pippa Bianco tudo é mais complexo do que o choque doméstico de sensibilidades, ou melhor, do que o contraste entre a lucidez feminina e a desorientação masculina.
Com efeito, nada aqui se traduz numa abordagem prática ou funcional. Baseado na curta-metragem com o mesmo título, realizada em 2015, o filme de Bianco tem sobriedade que baste para transformar um tema associado à agenda #MeToo num objeto fílmico perfeitamente independente das discussões que marcam a atualidade mediática, mesmo que seja inevitável enquadrar-se nela. Não há ímpetos discursivos ou moral de pronto-a-vestir. O que parece interessar mais à realizadora são as zonas de ambiguidade, nomeadamente aquelas que são fomentadas por esta era tecnológica e o modo como a nossa experiência está dominada pelos impulsos de luz dos ecrãs.
Por isso mesmo Share toma como ângulo a vivência mais íntima, e também virtual, de Mandy (interpretada por uma contida Rhianne Barreto), adolescente de 16 anos cujo quotidiano se vai tornando progressivamente nebuloso, não só com a assombração das suas dúvidas, mas com as consequências do processo que os seus pais puseram em marcha para descobrir o que aconteceu e quem são os culpados. Uma espécie de pesadelo no qual imergimos através de intermitências luminosas - ora de candeeiros de rua ora de sessões de hipnose - que pontuam o ecrã como um jogo de abstração, sublinhando a atmosfera mental da protagonista.
Com esta estética de inclinação noir, Pippa Bianco leva-nos ao âmago da cultura jovem como quem sonda formas de ansiedade e desejo de fuga, ao mesmo tempo que, subtilmente, problematiza a contaminação do dia-a-dia pelos fenómenos da internet. E é em detalhes como o som de mensagens ou chats, constantemente a invadir o ambiente de cada cena, que o filme trabalha uma tensão muito moderna, sem deixar nunca de privilegiar o foco na turbulência interior de Mandy. Por diversas vezes, a câmara de Bianco detém-se sobre o seu rosto como que a pesquisar aquilo que não é verbalizado, e através dessa lente sensorial o filme assume uma verdade humana em tudo distante de um caráter panfletário.
Não por acaso, um dos aspetos curiosos deste título (premiado em Sundance e exibido no Festival de Cannes), que mexe com as coordenadas dos espectadores, é o facto de a protagonista ser membro de uma equipa de basquete, um "desporto de rapazes." Algo que podia ser um simples pormenor do seu perfil, mas que sugere uma ideia de robustez física e psicológica divergente do conceito generalista de fragilidade feminina. E essa ausência do lugar-comum, a começar pela imagem não estereotipada da vítima, é apenas um dos pontos a favor da escrita madura desta primeira obra.