Entre o natural e o espiritual

Figura internacional do cinema turco, Semih Kaplanoglu encena uma saga do mundo rural: <em>A Promessa de Hasan </em>é um filme dramático em que a natureza se apresenta contaminada pelos mecanismos da culpa.
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Consagrado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2010, com o filme Mel (conclusão de uma trilogia iniciada com Ovo e Leite, respetivamente de 2007 e 2208), o realizador Semih Kaplanoglu é, a par de Nuri Bilge Ceylan, um dos nomes mais internacionais do cinema da Turquia: as suas histórias enraizadas no mundo rural possuem, de facto, um invulgar apelo universal. Assim é A Promessa de Hasan, filme revelado na secção "Un Certain Regard" do Festival de Cannes de 2021, agora lançado nas salas portuguesas.

A sua intriga "psicológica" tem como centro o agricultor Hasan (Umut Karadag) e a agitada de gestão do seu pomar, sobretudo a partir do momento em que a companhia elétrica o informa da colocação de uma torre de alta tensão no meio da sua propriedade. Tentando manipular as autoridades, e também os vizinhos, de modo a que isso não aconteça, a sua saga vai adquirir uma inusitada dimensão de culpa, perversão e remorso. Isto porque a peregrinação a Meca, entretanto prometida a sua mulher Emine (Filiz Bozok), pressupõe uma "preparação espiritual", em particular do pecado de ter abusado dos direitos de alguém...

O negrume moral do anti-herói de Kaplanoglu envolve uma paradoxal celebração da luminosidade dos elementos paisagísticos - sublinhe-se o requinte da direção fotográfica de Özgür Eken. Não se trata, entenda-se, de uma banal exaltação "pictórica" do espaço onde crescem as maçãs de Hasan. O mais importante é o facto de a "naturalidade" desse espaço contrastar com as atribulações do protagonista, em ziguezague entre a hipótese de redenção espiritual e a mais rasteira manipulação afetiva.

Provavelmente, este é um daqueles filmes sobre o qual faz sentido dizer que a sua duração (2h 27m) não encontra "justificação" na diversidade das respetivas peripécias - há, de facto, situações de alguma redundância dramática. Ainda assim, os méritos de A Promessa de Hasan estão para lá de qualquer razão meramente "métrica". Até porque, a certa altura, Kaplanoglu arrisca tratar alguns momentos contrariando a respiração naturalista da sua história.

Embora não querendo retirar ao espetador o prazer da descoberta que a visão de um filme sempre contém, vale a pena referir que há um elemento central que, sendo absolutamente natural, vai adquirir uma inesperada importância simbólica: é a grande árvore da propriedade de Hasan (aliás, em destaque no cartaz oficial do filme). A sua presença leva mesmo Kaplanoglu a uma derivação "surreal" que, de forma insólita e, afinal, sedutora, contrasta com o tom geral do filme.

Neste (quase) verão cinematográfico de tantos filmes lançados com escassa proteção promocional, contrastando com o marketing das grandes "máquinas" de produção, A Promessa de Hasan é um objeto de muitas singularidades que merece ser descoberto. Dir-se-á que a obra do citado Ceylan se distingue por um fôlego dramático que aqui não encontramos, mas é um facto que Kaplanoglu possui uma visão do mundo enraizada num elaborado trabalho narrativo.

dnot@dn.pt

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