Encontro de irmãos no Expresso Transatlântico
Gaspar Varela, o menino-prodígio da guitarra portuguesa, andava pelos Estados Unidos em digressão com Madonna, quando o irmão mais velho, Sebastião, lhe enviou algumas das músicas que começou a fazer com o amigo Rafael Matos. "Eles já tocaram juntos nalgumas bandas e a ideia era apenas gravar algumas partes de guitarra portuguesa por cima", recorda Gaspar", perante a concordância do irmão mais velho: "não havia objetivo nenhum de gravarmos. Era algo que estava cá dentro e apenas queríamos tocar um bocado juntos para ver como saia. E como o Gaspar estava lá e eu e o Rafa aqui, íamo-nos juntando e mandando as coisas, para ele fazer as dele por cima".
O certo é que "a coisa foi andando" e acabou mesmo por se tornar mais séria, com o trio, entretanto batizado de Expresso Transatlântico (numa bem-humorada alusão ao início da banda, com um oceano pelo meio), a contar já com um EP homónimo e diversos convites para atuar em festivais como o Soam as Guitarras, em Oeiras, já neste dia 20 de maio, ou o NOS Alive, a 7 de julho. "Fazíamos chamadas para discutir ideias, mas nunca com o objetivo de criar uma banda ou de levar isto mais a sério. Isso só aconteceu bastante mais tarde. Mas a piada também foi mesmo essa, juntarmo-nos apenas pelo gozo de tocar. Eu e o Seba somos irmãos, o Rafa é como se fosse também um irmão, pois conhecemo-nos todos desde crianças, portanto foi mesmo naquela do embora lá curtir um bocado e depois logo se vê", adianta Gaspar, que com 18 anos é o caçula do grupo - Sebastião tem 23 e Rafael tem 25.
"A primeira vez que pensámos que poderíamos vir a ser mesmo, mesmo uma banda foi quando nos juntámos os três fisicamente pela primeira vez e surgiu logo o início do tema Primeira Rodada. Combinámos logo ali começar a trabalhar nas músicas e nas ideias que tínhamos de uma forma mais sólida", conta Sebastião. A canção em questão acabaria mesmo por ser o primeiro single da banda, a que se seguiram outros, como Azul Celeste, uma canção de homenagem à bisavó de Sebastião e Gaspar, a fadista Celeste Rodrigues; ou ainda Alfama, Texas, uma faixa cujo o título é bem elucidativo dos inusitados caminhos pelos quais se move este Expresso Transatlântico.
Foram as maquetes gravadas no estúdio caseiro de Rafael Matos que deram origem ao EP homónimo, lançado no final do ano passado. "Colocámos a hipótese de gravar logo um álbum, mas seriam necessárias muitas mais músicas e nós queríamos avançar logo com a coisa. Mas é um EP com um tamanho digno, que já dá para perceber o que somos", Explica Rafael, provocando uma gargalhada nos companheiros.
O concerto de apresentação do disco (e da própria banda), foi no Teatro Maria Matos, em Lisboa, a 7 de dezembro do ano passado, poucos dias depois da morte de Pedro Gonçalves, dos Dead Combo, a quem dedicaram o espetáculo. "A influência deles na nossa música é óbvia e gigante. Éramos miúdos quando eles começaram e crescemos a ouvi-los numa Lisboa que já tinha Dead Combo. E nas nossas vivências de crianças, adolescentes, jovens adultos e até adultos aquilo esteve sempre lá e deixou uma marca enorme, porque os Dead Combo são uma dessas bandas, que deixa marcas em quem os ouve", admite Sebastião. Já Gaspar não faz a coisa por menos: "Não tenho qualquer dúvida que são a minha banda favorita. Os Dead Combo são quem melhor conseguiu representar sob a forma de música o que é hoje Lisboa. E daí a homenagem ao Pedro. Na hora da nossa estreia tínhamos de prestar esse tributo a uma pessoa que foi tão importante e nos inspirou tanto".
A lista de referências do Expresso Transatlântico inclui ainda nomes como "a Naifa ou Fandango" e muitas outras coisas. "A nossa grande virtude é o modo como conseguimos ir beber às mais variadas fontes, mas sem pensar muito nisso. Crescemos a ouvir muita coisa diferente e é-nos natural recorrer a essas influências todas. Eu e o Gaspar, por exemplo, crescemos a frequentar casas de fado", sustenta Sebastião.
Inserem-se, para já, numa nova geração de artistas, que tendo como ponto de partida tradição da música portuguesa, a abrem ao mundo e às mais variadas influências, daqui, dali, de ontem e de hoje. "Há cada vez mais gente a fazer isso, como é o caso do Pedro Mafama, da Ana Moura ou até do Luís Varatojo", sublinha o músico. "Dantes, quando as pessoas começavam a fazer música, iam sempre beber ao que vinha de fora e hoje, cada vez mais, as principais referências já são cá de dentro, o que é ótimo", acrescenta Rafael. "Cá de dentro e da história da nossa música, já não são só coisas mais recentes. E também a partir das várias culturas que coabitam nas nossas cidades", atira entretanto Gaspar, repetindo o exemplo dado pelo irmão: "O Mafama e a Ana Moura fazem isso muito bem. Neste momento, a Ana Moura é talvez a artista da atualidade com quem mais me identifico. Acho muito importante o caminho de exploração que ela está a fazer através do fado. Da mesma forma que, há uns anos, o Luís Varatojo utilizou a guitarra portuguesa de uma outra forma, retirando-a do fado, mas sem desrespeitar o instrumento, tal como eu estou a tentar fazer agora".
E como reagiu o meio do fado, por vezes tido como bastante conservador, a este arrojo dos bisnetos de D. Celeste? "Não sei nem quero saber. As pessoas com quem me dou desse meio gostaram e apoiam-nos. Felizmente que os tempos evoluíram e há cada vez menos conservadores dentro do fado", responde Gaspar, sem meios-termos. Já o irmão prefere desvalorizar a ideia do conservadorismo no fado: "Infelizmente ainda existe muito essa ideia do fado ser um meio bastante conservador, mas já não é tanto assim. E a verdade é que a guitarra portuguesa é, acima de tudo, uma guitarra. É um instrumento de cordas ligado ao fado, mas que pode ser tocada em qualquer outro estilo musical". O que nos leva a outra questão, sobre o que é, afinal, esta música que os Expresso Transatlântico fazem? "Para quê meter um rótulo? É música portuguesa e pronto", afirma Gaspar, corrigindo-se de imediato: "Lisboa é hoje uma cidade multicultural e tentamos ir beber um bocadinho a todas essas culturas presentes na cidade, especialmente àquelas que nos são mais próximas. É isso mesmo, fazemos música lisboeta e pronto".
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