Na introdução do livro Cosmos, que teve vida conjunta com uma série televisiva homónima nos anos 1980, escreveu Carl Sagan: “Pouco a pouco, fomo-nos afastando do cosmos. Comparado com as nossas preocupações do dia-a-dia, tem-nos parecido irrelevante e distante. Mas a ciência veio descobrir não só a grandiosidade desse universo, não só que esse universo era acessível à compreensão humana, mas também que, num sentido muito real e profundo, nós fazemos parte dele, nascemos dele e a ele estão fortemente ligados os nossos destinos.” Vem a lembrança destas palavras a propósito das estreias de Elio, a nova animação da Pixar agora nos cinemas, e Sally, um documentário com chancela da National Geographic disponível no Disney+. Porquê? Porque são ambos filmes de olhos postos no fascínio do tema espacial e na relação das coisas da humanidade com o universo, que parecem exalar a “esperança científica” de Sagan, o lendário astrónomo e divulgador americano. No meio das preocupações diárias, com o mundo e com o nosso cantinho, será que ainda olhamos para o céu como se olhava nas décadas de 1960, 70 e 80? Certamente um passeio milionário ao espaço nestes dias já não corresponde à beleza existencial da viagem de Sally Ride (1951-2012), a primeira mulher americana a experienciar a gravidade zero. Mas comecemos por Elio. A animação Pixar que sucede ao fenómeno Divertida-Mente 2 – antecedido por alguns falhanços criativos e/ou filmes prejudicados pela pandemia – é uma demonstração de qualidade importante nesta fase dos estúdios: uma animação firme no engenho inventivo da marca que nos deu Toy Story e Coco, inspirada pelas narrativas alienígenas da cultura pop. Isto é, não apenas os filmes mais óbvios de Spielberg (Encontros Imediatos do Terceiro Grau, E.T. - O Extraterrestre), mas porventura também um romance de Carl Sagan, Contacto, adaptado ao cinema por Robert Zemeckis, em 1997, com Jodie Foster no papel de uma cientista que descobre provas de vida extraterrestre através de sinais de rádio. É mais ou menos por aí que segue a história de Elio Solis, um rapaz órfão, à guarda de uma tia solteira (ela desistiu de ser astronauta para cuidar dele) cujo trabalho numa base militar será a origem da obsessão do menino por entrar em contacto com vida inteligente fora do planeta Terra. Entenda-se: Elio não tem propriamente jeito para fazer amigos, sente-se sozinho, e quando descobre a possibilidade de comunicação por rádio, só quer concretizar o desejo de ser raptado por alienígenas... O que acontecerá em boa hora, com garantia de aventura, muita cor e emoção, num planeta chamado “Comuniverso”. A realização de Elio, inicialmente a cargo de Adrian Molina, corealizador de Coco, foi interrompida pela greve dos atores e argumentistas em 2023, tendo o projeto passado para as mãos de Domee Shi (Turning Red – Estranhamente Vermelho) e da estreante Madeline Sharafian, com Molina a assumir a pasta da sequela de Coco, prevista para 2029. Não se admire, por isso, o espectador de ver três nomes creditados na autoria desta animação, que apesar das mudanças parece mesmo conter algo dos pozinhos mágicos de Coco... Vida de astronauta .Longe da fantasia, mas ainda assim imbuído do deslumbramento científico de Elio, o documentário Sally, de Cristina Costantini, traz-nos a memória da astronauta Sally Ride entre o retrato histórico e a perspetiva angustiante de que esta mulher nunca teria chegado onde chegou se fosse conhecida a sua homossexualidade. A partir de entrevistas com familiares e amigos – sobretudo a companheira com quem viveu durante 27 anos, Tam O'Shaughnessy –, é dado aqui um olhar completo sobre o acontecimento que moldou a vida de Sally, desde a preparação para voar até à aterragem. Com recurso a várias imagens de arquivo dos trabalhos na NASA, o documentário de Costantini mostra a pressão, inclusive mediática, de que foi alvo antes de se tornar a primeira americana no espaço (a grande pioneira fora a russa Valentina Tereshkova), o machismo no interior da agência espacial e o controlo que foi capaz de manter até ao final da vida para resguardar a intimidade e preservar uma postura profissional sem ruído. Tudo isso surge como objeto de quase mistério, quando analisada a personalidade de Sally Ride. Mas, ao mesmo tempo, e enumerando-se exemplos de amigas próximas, lésbicas, que foram definitivamente prejudicadas pela revelação pública da sua sexualidade, houve, por certo, na gestão pessoal desta mulher da ciência uma sabedoria que lhe permitiu posicionar-se no lugar merecido. Um lugar que fez sonhar muitas crianças e que a tornou, em 1983, durante um período alucinante, na maior heroína americana. Inês N. Lourenço