Anova fase da editora Guerra & Paz vai ser menos "rebelde", foi assim que o responsável, Manuel S. Fonseca, anunciou há poucas semanas a reorientação do catálogo numa sessão na Cinemateca Nacional, sob cartazes de filmes que foram marcantes para o século XX, como Ginger e Fred de Fellini ou o encontro cinematográfico de Sophia Loren com Richard Burton. Filmes que traçam por vezes um paralelo temporal com alguns dos novos livros, bem como rivalizam com os acontecimentos literários posteriores que interessaram aos leitores, e que não deixam de ter um significado, como é o destas duas coleções: lançar várias obras nunca editadas em Portugal, relançar livros esquecidos e apresentar clássicos ignorados pelo mundo editorial português..Quando o editor informa que cortou um pouco da rebeldia não significa que as novidades sejam destituídas desse caráter, antes que a ultrapassagem da pandemia e a superação de uma crise devido à insolvência da distribuidora, que fez perder um ano inteiro de faturação, permite à Guerra & Paz olhar a mais longo prazo e retomar uma das grandes apostas habituais nas grandes editoras: a das coleções sistematizadas, sob um chapéu literário que as harmoniza. Ou seja, diz o editor, "com estas coleções, o romance não faz o seu caminho a partir do zero por estar incluído numa coleção que o ajuda a tornar-se conhecido". Esta sistematização não se fecha apenas nos géneros literários escolhidos, bastante diversos e globais, mas numa identidade visual que destaca as duas coleções quando se posicionam nas livrarias - os seis volumes abaixo já estão publicados..A escolha dos títulos é muito abrangente, como se pode observar com o primeiro quarteto de cada uma delas que já é conhecido. Os primeiros dois volumes foram revelados logo na sessão de apresentação e na próxima semana estarão disponíveis na totalidade os primeiros quatro livros da primeira coleção e dois da segunda. Para Manuel S. Fonseca, o âmbito das opções literárias é muito alargado e, ressalva, "não nos importamos que sejam best-sellers". Revela sobre a essência da primeira coleção que é uma espécie de world novel, a modos do que a world music significa para a música. Um dos próximos destaques será a o romance de Jurek Becker, Jacob, o Mentiroso, um sucesso mundial que retrata a vida de um judeu durante a Segunda Guerra Mundial, que já foi traduzido em 25 línguas, vendeu mais de um milhão de exemplares na Alemanha, mas nunca teve uma edição portuguesa. Sobre a segunda, uma coleção que versa os romances do mundo, um dos primeiros livros a ser lançado irá retirar da obscuridade nacional um livro mítico do prestigiado escritor norte-americano Stephen Crane, já que também nunca foi publicado em Portugal o seu romance Maggie - Uma Rapariga das Ruas. Em seguida, surgirão obras de James Joyce, como o conto Os Mortos, o famoso e polémico romance de André Gide, Caves do Vaticano..Também Stefan Zweig e George Orwell estão entre os outros autores desta coleção. Ainda haverá uma terceira coleção, a ser lançada depois do verão, e que faz muita falta: a de ficção portuguesa. Entretanto, as novidades extra estas coleções continuarão a ser regulares, ou não fosse o lema da editora o seguinte: "É preciso virar a página"..Entre os primeiros títulos da coleção romances de guerra e paz está As Metamorfoses do Elefante - Fábula Angolense, de José Luís Mendonça. A narrativa do escritor angolano (n. 1955) é surpreendente tanto pelo estilo como pela inventividade. O colorido da linguagem confirma que a língua portuguesa pode ter várias faces e que Mendonça lhe sabe dar uso, obrigando a que o leitor mantenha um sorriso constante devido às peripécias, nem sempre agradáveis, que o protagonista vai vivendo. Para contar essa história, recupera muitos dos cenários pós-independência angolana - o autor é um ativista cultural e político - e momentos trágicos da polémica vida nacional do país, como é o caso do desaparecimento da namorada devido ao caso Nito Alves. Tudo tem início com uma epidemia de riso a que as autoridades chamam Surriso - surto de riso -, enredo que permite mostrar os desmandos políticos sobre uma população indefesa e recordar momentos das restrições que a pandemia veio exigir a todo o mundo nos tempos mais recentes, transformando as memórias frescas dos leitores em matéria literária. Além de ser um romance muito divertido, abre portas ao conhecimento de novos nomes da literatura de língua portuguesa que até agora tem passado mais ou menos despercebidos em Portugal. O glossário em rodapé que acompanha grande parte das páginas não dificulta a leitura, mostrando antes a diversidade da língua que se foi adaptando nos países que a tomaram como principal, sendo mesmo um desafio para o leitor tentar desvendar a sua origem e significado - essa particularidade surge logo no subtítulo na capa: Fábula Angolense..As Metamorfoses do Elefante.José Luís Mendonça.148 páginas.Com um título muito conseguido, Esta Ferida Cheia de Peixes, a escritora colombiana Lorena Salazar Masso tem vindo a arrebatar os leitores e a crítica desde o ano passado com uma história sul-americana que faz lembrar ao nível da geografia, das metáforas e das sonoridades, muito dos bons tempos desta literatura longínqua. Foi considerado um "brilhante romance de estreia muito musical", e narra a peregrinação de uma mãe pela selva colombiana, cujo veículo de transporte é o rio que atravessa o país com um objetivo inesperado, mostrar à mãe biológica o filho que criou. Uma das principais características da escrita de Masso é o lirismo, que se defronta com a violência da natureza luxuriante e complexa, ao mesmo tempo que coloca uma leitura política e do que é nascer, crescer e ser mulher. O refazer dos conflitos sociais em que as comunidades rurais vivem possibilita uma entrada num mundo que é dominado por forças quase desumanas além da selva, como são as situações de repressão política e de um recente massacre, o de Bojayá, em que vários jovens perderam a vida. Em resumo, uma reflexão sobre a maternidade enquanto a protagonista percorre um rio que a levará a cumprir a tarefa a que se propôs, por mais difícil que esta seja..Esta Ferida Cheia de Peixes.Lorena Salazar Masso.Tradução de Luísa Mellid Monteiro.143 páginas.É, provavelmente, o livro mais desafiante destas novidades devido ao tema do canibalismo, nada que a prosa bem humorada de Shalom Auslander não consiga contornar. Mãe para Jantar, como o próprio título sugere, parte da seguinte hipótese: e se tivesse de comer a sua mãe para receber a herança? A primeira frase do livro confirma o que vai acontecer: "As mães sabem muito mal. São repugnantes, da cabeça aos pés (a cabeça é a pior parte). Não há tempero que lhes valha, podem perguntar a qualquer pessoa que já tenha ingerido uma." Se o leitor ultrapassar este início, o que vem a seguir será menos indigesto e irá conhecer uma história sobre os últimos canibais americanos que tem vindo a suscitar curiosidade em muitos países onde o romance tem sido traduzido. É claro que esta família pouco tradicional terá ainda o prato forte da narrativa para concretizar e, mesmo que um dos doze filhos seja vegan ou alguns deles ponderem que enterrar será a melhor solução, há que decidir o quê e como fazer para cumprir o ritual a que a própria mãe defende. Há um diálogo em que se diz "Nós somos o que comemos", palavras que encaminham o leitor para o argumento deste romance canibal e os debates sobre o modo de viver de certas minorias em extinção. Uma comédia negra sobre as dificuldades da vida moderna, já disseram, e um debate inesperado sobre a forma de lidar com legados civilizacionais..Mãe para Jantar.Shalom Auslander.Tradução Mónia Filipe.214 páginas.O escritor holandês Gerrit Komrij viveu em Portugal durante alguns anos e foi-lhe impossível fugir à descrição do seu povo. Começou por um romance situado no norte do país, Atrás dos Montes, e dois anos depois publicou uma radiografia do modo de ser português, intitulado Um Almoço de Negócios em Sintra. O relato começa na terra que dá nome ao romance mas rapidamente passa para o interior, o cenário perfeito para entender e classificar a personalidade das pessoas com quem convive, designadamente os mestres de obras e operários que lhe reformam a casa, não sem deixar de descrever a senhora que lhe vende a casa e outras figuras dignas de retrato. Sobre estes relacionamentos que o deixavam muitas vezes perplexo, até quando se confrontava com conterrâneos que já se tinham aportuguesado, tem muito para contar e é interessante vermo-nos pelo olhar dos outros. Komrij faz também um diagnóstico do funcionalismo público indigente, como as pessoas são desleixadas e pouco cumpridoras das obrigações e, principalmente, a estranha forma de se relacionarem. Não é crítico além do necessário, apenas tem de se conformar com o Portugal das últimas décadas do século passado, uma realidade que a atual população portuguesa pouco deve recordar tantas foram as mudanças e que, sendo assim, permite uma revisão da evolução deste retângulo. Komrij dizia que era «um apaixonado por Portugal, mas não um apaixonado cego", o que se confirma em muitos dos seus desabafos sobre os hábitos, as virtudes, os defeitos desta "periférica reserva de uma cortesia que o Norte da Europa já arrumou a um canto". O fatalismo não está ausente nem o atavismo, daí que a leitura seja bem proveitosa..Um Almoço de Negócios em Sintra.Gerrit Komrij.Tradução de Fernando Venâncio.164 páginas.Um dos tesouros da coleção admirável mundo do romance é a obra Maggie - Uma Rapariga das Ruas, de autoria de Stephen Crane. Escritor só há décadas traduzido em Portugal, nunca antes teve este livro em português e foi recentemente "apresentado" através de uma biografia de mil páginas assinada por Paul Auster, em que este investiga a pouco conhecida vida do seu antecessor e analisa a importância da obra para os que se lhe seguiram. Sobre Maggie escreveu, entre outras análises literárias, que este "seu primeiro romance, de 1893, foi um esforço para penetrar no pensamento de uma jovem de um bairro pobre escrito por alguém que ainda não estava assim tão longe da adolescência". Maggie não foi um sucesso imediato, mas fez com que reparassem no autor e é, segundo Auster, um trabalho que "revela uma grande imaginação, uma boa estrutura e um ponto de vista pioneiro". É essa narrativa que irá surpreender o leitor que tem pela primeira vez acesso ao romance de estreia de um escritor que se consumirá a ele próprio e morrerá cedo. O retrato que faz da época em que o romance decorre é muito forte e ninguém ficará com a mesma opinião sobre a Nova Iorque do fim do século XIX, principalmente sobre os arredores pobres, e a luta pela sobrevivência, após ler tanta ironia com que são descritas as relações sociais e todo aquele mundo sórdido. Como já foi dito, Maggie é um "estranho poema visionário, de narrativa pura, sem análises sociais, sem pedidos de reforma e sem reflexões psicológicas que expliquem porque é que as personagens fazem o que fazem"..Maggie - Uma rapariga das ruas.Stephen Crane.Tradução de Sónia Amaro.114 páginas.Edith Wharton não é a desconhecida em Portugal que será Stephen Crane e a sua principal obra, A Idade da Inocência, já teve várias edições em língua portuguesa. A mesma divulgação não se poderá dizer de Ethan Frome, que o especialista em literatura Harold Bloom chegou a colocar ao mesmo nível de Monte dos Vendavais. Tudo se passa no início do século XX, numa Nova Inglaterra que a escritora norte-americana refaz a seu gosto e onde introduz um triângulo amoroso e as grandes questões que se põem às personagens perante a hipocrisia social e o comportamento mais normalizado. O romance é considerado um os clássicos da literatura americana do século passado e Wharton foi a primeira mulher a receber um Prémio Pulitzer. O romance foi reescrito anos depois de uma primeira versão nunca publicada, quando a autora estudou a língua francesa em Paris, reformulando toda a narrativa para a encaixar na sua experiência de vida no estado de Massachusetts..Ethan Frome.Edith Wharton.Tradução de Maria Ferro.142 páginas