"É difícil escrever um livro com um protagonista detestável"
O vencedor da edição de 2022 do Prémio Literário José Saramago está em Portugal para o lançamento do seu Dor Fantasma. Rafael Gallo conversou com o DN sobre Rômulo Castelo, pianista brilhante mas amargurado, e também sobre o Brasil pós-Bolsonaro.
O leitor apercebe-se que o autor deste Dor Fantasma tem de ser alguém que sabe de música, tão esta é central no livro. Qual é a sua ligação com a música?
Sou formado em Música e trabalhei com música durante algum tempo. Além disso, é realmente um interesse, estudei muito e trabalhei muito, mas a música está sempre comigo, ouço música quase o tempo todo. Precisei de fazer alguma pesquisa para o livro porque esse ambiente de música clássica não foi exatamente o meu. Nunca fui um concertista, sou muito mais da música popular e da Bossa Nova. Exigiu uma certa pesquisa, mas também alguns conhecimentos. Por exemplo, toco piano de Bossa Nova, não o de cauda, mas percebo o funcionamento do instrumento, tenho esse conhecimento e isso ajudou na escrita.
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O compositor húngaro Franz Liszt surge aqui como um grande nome e também como obsessão da personagem principal. Foi uma escolha muito pensada ou podia ser qualquer outro compositor o ídolo do pianista Rômulo Castelo?
Liszt foi quem fazia mais sentido para a história. Porque o começo da construção da história é bastante caótico, temos vários elementos na mesa que podemos escolher e eu gosto de experimentar. Comecei por pensar que a personagem é um pianista, então depois vem que repertório tinha, o que é que queria tocar, os seus desejos para o futuro e se tinha um compositor favorito. Lembro-me de ter ouvido a história de uma peça intocável, Rondeau Fantastique, que só o próprio Liszt conseguiu tocar, pois era um virtuoso do piano. Isso começou a atrair-me. E comecei a pensar que se ele fosse o primeiro a conseguir tocar a peça depois de Liszt, isso seria um bom motivo. É entrar nesta coisa de que a vida está sempre prestes a acontecer, mas não acontece. Haver uma peça intocável, pelo menos na crença dele, é o elemento perfeito. Portanto, já que Liszt é um referencial da música clássica até hoje, quis fazer com que o personagem quisesse ser o grande intérprete de Liszt.
As personagens vão ganhando coerência acrescentado -lhes riqueza, ou seja, esta referência a Liszt tem de invariavelmente ir dar a uma parte da história passada em Budapeste...
Exatamente, uma coisa começa a puxar a outra. Comecei a estudar, a pesquisar, a ler biografias de Liszt e quis fazer essa relação do personagem com a Europa, até por essa ideia no Brasil de que as nações europeias são melhores, são superiores. A Europa e Budapeste acabam por se tornar uma espécie de terra prometida para ele, para Rômulo, porque criam-se precisamente essas ligações afetivas. Eu que nasci em São Paulo gosto de Bossa Nova e vou ao Rio de Janeiro ver o sítio de onde vêm todas as músicas que gosto. Existe uma ressonância afetiva que faz o nosso coração pular um pouco mais rápido.
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A personagem principal é um homem brilhante, mas amargurado, é uma personalidade que admiramos na sua determinação, mas percebemos que há ali muitos defeitos de personalidade, sobretudo no relacionamento familiar. Como é construir uma personagem destas? Qual é o limite para o tornar mais odioso ou menos odioso?
É difícil escrever um livro com um protagonista detestável, porque ficamos o tempo todo a questionar-nos.
Mas acha que Rômulo é detestável desde o início?
Sim, sim, é certamente. Ele não é o herói de ninguém, mas ao mesmo tempo também não queria que ele fosse uma personagem que vamos odiar o tempo todo, quase com um certo masoquismo e vontade que ele se prejudique.
Por vezes o leitor até pode sentir que gostava que o pianista tivesse o sucesso com que tanto sonha?
Exatamente. Queria que em alguns momentos os leitores pudessem ter uma relação com Rômulo em que eles até pudessem pensar que ele é exagerado, é um extremista - e o livro aponta nesse caminho, ele vai ficando cada vez mais tirânico e violento -, mas em alguns momentos queria que os leitores pensassem que tinham algum grau de concordância com ele. Por exemplo, mesmo no início do livro, quando há um processo seletivo em que há outro professor que é totalmente inadequado com as alunas e olha para elas de forma sexual, Rômulo defende que é o tipo de atitude que tem de parar. Ou seja, há momentos em que existe essa pluralidade e que aquela rigidez que ele tem como um todo, que é má, nalgum momento tem de ser uma coisa boa.
Alguma vez conheceu algum Rômulo ou é completamente produto da imaginação?
Tem sempre um pouco de pessoas que conhecemos, inclusive de mim mesmo. Na verdade, o Rômulo tem muito daquilo que combato em mim próprio e, para mim, escrever tem um pouco desse ato de rebelião íntima. Portanto, esse lado da rigidez de desempenho é uma coisa que vem um pouco de mim, porque tive uma educação muito rígida, de igreja, eram coisas que apesar de eu ter largado, há sempre qualquer coisa que fica.
Admira o extremo profissionalismo da sua personagem odiosa?
Sim, tem esse lado que é positivo, é a tal ambiguidade. É preciso uma dedicação extrema para se alcançar objetivos, tem um lado bom, mas também tem um lado perverso com o qual é preciso ter cuidado. Acho que a maioria dos artistas têm essa coisa de querer lutar para alcançar coisas grandes, para poderem ser uma espécie de Miguel Ângelo na literatura ou na música, mas depois há o lado de perceber que provavelmente não têm essa capacidade e que não podem sacrificar todo o resto da sua vida.
"José Saramago é um autor muito forte no Brasil, muito lido e muito querido lá. O prémio, por carregar o nome dele, dá um destaque muito grande, embora seja maior em Portugal porque é um prémio de cá. Mas sim, também tem um impacto lá."
Foi recompensado com o Prémio Literário José Saramago. Sei que teve outros no Brasil, até com Reveillón e outros Dias e Rebentar, mas este prémio em Portugal vai impulsionar muito o livro aqui em Portugal. No Brasil também pode funcionar? O nome Saramago, o único Nobel da Literatura de língua portuguesa, é forte no Brasil?
Sim, José Saramago é um autor muito forte no Brasil, muito lido e muito querido lá. O prémio, por carregar o nome dele, dá um destaque muito grande, embora seja maior em Portugal porque é um prémio de cá. Mas sim, também tem um impacto lá. Para mim sinto é ser quase um começo absoluto em Portugal, porque para a maioria das pessoas cá este será o meu primeiro livro, sou um autor inédito que chega aqui. Mas no Brasil, apesar de não ser um começo, é um recomeço, há todo um outro olhar e todo um outro lugar que posso ocupar. Estas distinções ajudam muito os escritores.
Olhamos para o Brasil, um país com mais de 200 milhões de habitantes e pensamos nesta massa enorme de gente e dos potenciais milhões de leitores. Para um escritor é possível viver da literatura sendo brasileiro?
É muito difícil, é muito parecido com aqui. É muito estranho, acho que é estranho virmos do Brasil para aqui, por exemplo, dou muito mais entrevistas quando estou cá do que lá. Vejo que aqui o livro chega mais às pessoas comuns, no Brasil isto não se consegue, a literatura lá é mais elitista. Aqui, ao passar na fronteira, um agente reconheceu-me como vencedor do Prémio Saramago e me felicitou.
Então os 200 milhões são só uma estatística, os números não suportam uma imensidão de leitores?
Sim. Por exemplo, vamos pensar num autor da mesma dimensão que a minha, antes do Prémio Saramago: um autor contemporâneo lá, se vender 2000 exemplares isso significa que vendeu muito. Sou alguém que já vendeu muito bem, um fenómeno será dez mil ou quinze mil, e há sempre super fenómenos, mas contam-se pelos dedos de uma mão as pessoas que passam desses números.
Se tiver de sugerir escritores atuais brasileiros que um português deve conhecer, quem serão?
Vou aproveitar para nomear as duas mulheres que ganharam o Prémio Saramago e que são brasileiras, são duas escritoras que adoro. São a Adriana Lisboa, acho-a incrível, e a Andréa Del Fuego, que é outra grande escritora. Os livros que ganharam, o Sinfonia em Branco e Os Malaquias, esses são dois dos meus livros preferidos de sempre. Acho que os portugueses, os que não conhecem ainda, vão gostar muito, são mesmo bons.
Em relação à língua portuguesa, a editora respeitou a escrita original, fez apenas um marcador-glossário com as palavras que não são comuns cá. Pessoalmente, acho que assim se consegue a naturalidade completa porque as personagens são brasileiras e o contexto também. Acha que não é por ser brasileiro que vai ter dificuldade em conquistar leitores?
Acho que a língua partilhada é uma mais-valia. É muito curioso pensar como será que para vocês é o meu português, sei que é diferente, não tenho a utopia de que o meu livro é universal. Sei que as pessoas leem e conseguem "cheirar" o Brasil no livro a dois metros de distância, mas não tenho noção do quanto. Já ouvi alguns relatos, nunca tentei fazer uma caracterização, não pensei mandar para o Prémio Saramago sequer porque achei que já nem estava na idade para concorrer. Não houve essa coisa de fazer uma coisa que caracterizasse o Brasil lá fora, mas há coisas que para mim são absolutamente normais, coisas que acontecem, mas de repente alguém diz que isso é algo muito típico do Brasil. Fico muito curioso por perceber como é para os outros ler algo do Brasil, porque quando leio algum autor português entendo o que está escrito, mas sei que é português pelas palavras diferentes, tem uma musicalidade na língua que é diferente e se sente. Quase que faz com que estejamos a ler com os olhos, mas a ouvir aquilo na cabeça com uma voz diferente que não é a nossa. Essas diferenças existem e espero que elas tornem as coisas mais interessantes. Espero que esta mistura cause um efeito interessante e até agora parece que tem dado certo, mas vai sempre ser um mistério para mim como é que eu sou para os outros.
"Vou aproveitar para nomear as duas mulheres que ganharam o Prémio Saramago e que são brasileiras, são duas escritoras que adoro. São a Adriana Lisboa, acho-a incrível, e a Andréa Del Fuego, que é outra grande escritora. Os livros que ganharam, o Sinfonia em Branco e Os Malaquias, esses são dois dos meus livros preferidos de sempre."
Numa entrevista que deu no Brasil, disse que Rómulo era um pouco bolsonarista. Considera-se alguém envolvido politicamente?
Sim, em algum grau. Não sou o maior dos militantes de presença de corpo, mas acho que algum posicionamento é impossível não ter.
Sempre foi crítico da presidência de Jair Bolsonaro?
Sim, claro, acho um horror. Porque, por exemplo, se houvesse outros candidatos e ambos fossem razoáveis, posso até discordar do candidato A, mas é legítimo que as pessoas votem nele, é a democracia. Faz parte do jogo, faz parte de diferentes visões de sociedade. Mas acho que não preciso de pegar no meu candidato A e defendê-lo ao atacar o outro o tempo inteiro. Quando se entra nesse nível que já sai da política e já entra em questões éticas que saem do modelo de sociedade que procuramos, acho que temos de nos posicionar.
Está otimista com o regresso de Lula da Silva à presidência?
Muito, muito. Acho que, primeiro, era fundamental e necessário que Bolsonaro saísse, acho que seria muito perigoso se tivesse sido reeleito. Mesmo durante as eleições houve algumas ações problemáticas. Outras depois, incluindo a invasão do Congresso, e certas forças armadas foram muito coniventes e isso é muito perigoso.
Mas essa divisão política muito forte que houve no povo brasileiro, sentiu-a, por exemplo, na sua família ou nas pessoas próximas?
Sim, essa divisão sente-se na sociedade, mas enfraqueceu já um bocadinho. O PT, o partido de Lula, desde que tivemos a redemocratização em 1984 ou 1985, e quando o partido começou a tentar entrar nessa nova democracia, foi sempre muito demonizado. Enfim, passou-se o tempo e o outro lado foi tão mau que o PT acabou por conseguir chegar ao governo. Acho que os dois primeiros governos do Lula foram os melhores dessa nova fase da democracia, mas depois o país passou por problemas. Essa demonização começou a voltar em força, a ideia de "tudo menos o PT", e muitas pessoas que votaram no Bolsonaro nem foi por acreditarem nele ou serem bolsonaristas, muitas foi porque preferiram votar Satanás do que votar PT. Mas o governo de Bolsonaro foi tão trágico, e a pandemia demonstrou isso, que houve uma volta que até foi rápida. Agora estamos a voltar a uma democracia com representação.
Esta questão da política poderia ser um tema para um novo livro?
Acho que até pode ser, mas acho que trato questões de família porque na minha vida é quase como se essas relações primais de vinculação afetiva estão no cerne das nossas decisões e políticas. Acho que muita gente entrou no discurso do Bolsonaro, naquela retidão fascista de que era preciso colocar a ordem em tudo, chega de homossexuais, de transexuais, a família tem de ser tradicional e todo esse discurso. Muita gente associou-se a isso porque a própria família se tinha desestruturado e era quase ter uma vontade de reordenar a família e procuraram alguém com esse discurso. É por isso que, embora não apareça no livro, meio que podemos presumir que se perguntássemos ao Rômulo a sua orientação política, ele diria bolsonarista.
leonidio.ferreira@dn.pt
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