Dulce Caroço: chamaram-lhe “viúva negra”
Um assalto à portuguesa:
- Olha, não estragues a tua vida, eu não te faço mal. Não estragues a tua vida nem a minha, põe só o dinheiro em cima do balcão para eu me ir embora.
- Se quiser mais, eu tenho aqui mais, eu ponho mais…
- Não, não é preciso, só preciso disto. Abre só a porta para eu me ir embora.
Mal chegou a casa, desatou em prantos. Não pelo que tinha feito, disse, mas por achar triste ter chegado ao ponto de ter de assaltar um banco, logo ela que nunca na vida tinha praticado crime algum ou feito mal a ninguém. Nem sequer uma multa de trânsito, dirá em sua defesa, tempos depois.
O primeiro assalto, garante, não foi sequer planeado. Com uma pistola de plástico, a mesma que usaria em todos os outros roubos, e sem usar qualquer disfarce, com o cabelo normal apanhado e apenas de óculos escuros, em 29 de Abril de 2011 entrou numa sucursal do Banif da zona onde morava, na Parede. Levantara-se de manhã já com aquela fisgada ou, como diria a Júlia Pinheiro, “temos de nos auto-motivar a nós próprios”: entrou no banco, pôs-se na fila atrás de uma senhora, mas quando chegou a sua vez recuou, saiu para a rua. Durante uma hora, esteve a mentalizar-se encostada a um pilar, na entrada do banco, repetindo o mantra “tens de conseguir, tens de conseguir, o dinheiro é teu, tens de conseguir”. Olhou para o relógio, faltava um quarto de hora para o banco fechar. Depois, entrou. Chegou-se ao balcão, mostrou a arma. A funcionária, solícita, ainda lhe perguntou se quereria mais. Não, bastava aquele: cinco mil euros exactos, em três maços cintados.
Ficou a aguardar que a polícia a fosse buscar a casa, pois, para todos os efeitos, pensou, as câmaras de vigilância tinham gravado a cena, ela estava de cara descoberta, era habitual dirigir-se àquele banco perto de onde morava. Passou-se um dia, passaram dois, três, quatro, nada. Só então decidiu gastar o dinheiro: encheu o frigorífico, comprou roupas novas para o filho, pagou a renda em atraso. “Ver a felicidade nos olhos do meu filho compensou tudo”, “deu-me muito gozo gastá-lo, sou sincera”, diz ela, anos volvidos, numa entrevista que concedeu à NiT em 28/9/2021, por ocasião do lançamento de uma série televisiva sobre a sua vida e obra, Vanda, da autoria de Patrícia Müller, emitida pela Opto.
Dulce de Jesus Parra Caroço, que a imprensa tratou por “Viúva Negra”, pois assaltava bancos trajada de negro, nasceu em Portalegre, em data não especificada, e aí estudou até ao 6.º ano de escolaridade. Começou a trabalhar com 13 anos, primeiro como cabeleireira num pequeno salão da Rua Mouzinho de Albuquerque, antiga Rua do Pirão; depois, passou para salões maiores, um no Centro Comercial Fontedeira, na Avenida do Movimento das Forças Armadas, e, a seguir, um outro junto da Rodoviária. O sucesso alcançado fê-la sonhar mais altos voos e acabou por fixar-se em Oeiras, onde abriu um centro de estética de certa envergadura, com vários funcionários a seu cargo.
Um dia, porém, recebeu uma carta das Finanças a aplicar-lhe uma coima elevada, por falta de contabilidade organizada. Seguiu-se uma inspecção da Segurança Social e, com ela, uma nova coima, pois não estava a efectuar com a regularidade devida os descontos aos funcionários do seu centro de estética. Por fim, mas não por último, descobriu que o marido a enganava, separou-se com violência, sem olhar para trás.
Quatro meses depois do primeiro assalto, atacou uma agência do Montepio, também na Parede. Uma miséria, 300 euros. A seguir, o Banif do Restelo, 2.085 euros. “Nós achamos que aquilo é tão fácil que compensa o risco”. Ao todo foram doze assaltos, entre Abril de 2011 e Outubro de 2012. Num deles, no Banif de Carnaxide, não fez mais do que 310 euros, quase como uma ida ao Multibanco. Noutro, ao Santander de Paço de Arcos, pior ainda, 100 euros. Noutro ainda, ao Deutsche Bank de Oeiras, 390 euros. No Banif do Restelo, 1.500 euros. No Millenium BCP de Oeiras, 715 euros. No BPI do Estoril, 2.550 euros. No Barclays de Oeiras, 300 euros. Num total, os assaltos de Dulce Caroço terão rendido 15.920 euros, 200 dólares, 10 francos suíços e 20 libras esterlinas.
O modus operandi era simples e desarmante, a ponto de a juíza que a condenou ter sublinhado, quase em jeito de louvor, que os seus assaltos foram feitos de “forma operacionalmente bem executada”. De manhã, Dulce rondava a agência bancária, passava horas nas imediações. Depois de almoço, quase à hora do fecho, entrava no banco vestida de negro, de óculos escuros e peruca, escolhia funcionárias do sexo feminino, apontava-lhes a pistola falsa, recebia apenas o que elas lhe davam, na ânsia de fugir dali. Tinha por alvo mulheres não por achar que estas eram mais frágeis ou vulneráveis, mas, isso sim, por serem mais racionais do que os homens, que em ocasiões como aquela tendem a ter gestos impensados de machos.
No seu percurso criminal, todo passado em cerca de ano e meio, houve um hiato de seis meses, o tempo em que Dulce esteve empregada numa empresa de venda de aspiradores. Ganhava até bom dinheiro, diz, mas precisava de automóvel para o ofício e, na falta dele, recaiu no vício. Cometeu então um deslize imperdoável, inexplicável: como os assaltos na zona em que morava rendiam pouco, decidiu mudar de poiso, vá-se lá saber porquê, julgando, porventura, que as agências de Lisboa tinham mais dinheiro em caixa do que as da Linha do Estoril. Não tinham. No fatal dia 31 de Outubro de 2012, tentou assaltar a sucursal do Banif da Avenida da República. A funcionária, sempre uma mulher, disse-lhe que não tinha dinheiro na caixa, nada para lhe dar. Saiu às pressas do banco, mas dois funcionários foram no seu encalço, apanharam-na no meio da rua, e não ofereceu resistência. Na altura da detenção, trazia consigo uma pistola de plástico (ou, na linguagem própria das polícias, “uma reprodução de uma arma de fogo”), uma cabeleira postiça, dois pares de óculos de sol, uma mochila, um xaile e duas peças de roupa. Foi presente à juíza e só então “lhe caiu a ficha”, como disse, algo que não é tão incomum como isso nos criminosos como ela. Compreendeu, enfim, que os seus actos iriam ter graves consequências, ao obrigarem-na, desde logo, a separar-se do seu filho. Ligou ao ex-companheiro para que este cuidasse do menino, acabou condenada a sete anos de prisão, confirmados pelo Supremo, dos quais acabou por cumprir cinco. Depois de sair, esteve numa empresa de telecomunicações, voltou a trabalhar como cabeleireira, mas, naturalmente, hoje pouco se sabe dela, pese as notícias saídas aquando da estreia de Vanda.
A história de Dulce de Jesus Caroço, a mulher que assaltou mais bancos em Portugal, é a um tempo singular e banal. Nela encontramos a iliteracia financeira com que muitos gerem os seus pequenos negócios, indiferentes aos deveres ao Fisco ou na vã esperança de não serem apanhados pelos computadores da Segurança Social. Encontramos também a difícil situação de uma mulher só, recém-saída de um divórcio tempestuoso, com dois filhos, um dos quais menor e a seu cargo. E encontramos ainda a ineptidão das polícias: por mais declarações que os inspectores da PJ façam hoje de que já tinham o seu perfil definido, o facto é que Dulce Caroço, uma mulher inexperiente no crime, conseguiu assaltar onze bancos numa região circunscrita, durante quase dois anos, com os crimes filmados na videovigilância, e acabou apanhada não pelas autoridades, mas pela acção decidida de dois funcionários bancários. Dulce recorda, aliás, com ironia, que um dia ouviu na TV o perfil que a PJ tinha feito de si: uma toxicodependente com dívidas de jogo, que assaltava bancos ao final da semana para satisfazer os seus vícios. Perante tão desastrado retrato, entendeu, talvez com razão, que poderia continuar a assaltar bancos sem riscos nem sobressaltos.
O caso da “Viúva Negra” pode servir de exemplo de escola da teoria criminológica da “acção situacional”, que salienta a importância dos contextos na decisão criminosa e, a par de outras doutrinas, refere um dado nem sempre falado, o de que, numa parcela significativa de crimes, mesmo os de roubo ou assalto a bancos, há escassa preparação e quase nenhum planeamento. Mais do que isso, os criminosos raramente têm um “plano B”, pois nem lhes passa pela cabeça serem apanhados. A história de Dulce Caroço é também muito ilustrativa das chamadas “técnicas de neutralização da culpa”, a que os criminosos frequentemente recorrem para iludir a consciência do mal praticado. Dulce Caroço, sintomaticamente, não se mostra arrependida dos crimes que praticou e diz mesmo que voltaria a cometê-los se acaso tivesse um filho ou um ente querido a morrer à fome - como se fosse essa a situação de penúria e desgraça em que se encontrava quando fez o primeiro roubo. Refere, de igual sorte, que a sua carreira no crime se iniciou ao mesmo tempo em que era divulgado o escândalo do Banco Espírito Santo, como se este justificasse o seu gesto, e continua a figurar-se como uma injustiçada “pelo sistema”. É por isso que, confessa, adora os filmes da saga Ocean’s Eleven e a série La Casa de Papel, pois “todos os não heróis, que vão contra o sistema, eu amo”.
A condenação dos condenadores é uma das estratégias clássicas de neutralização da culpa, descrita já em 1957 num célebre artigo de Gersham Sykes e David Matza (“Techniques of Neutralization: A Theory of Deliquency”, American Sociological Review, vol. 22, n.º 6, Dezembro de 1957, pp. 664-670). Encontramo-la na perfeição nas seguintes palavras de Dulce: “posso-lhe dizer que tenho uma dívida às finanças que dura há 30 e tal anos. E que nunca vai ter resolução na vida. Porque não há hipótese. A não ser que me saia o Euromilhões. Porque aquilo é uma bola. Mesmo que a pessoa vá pagando, aquilo continua a crescer. Então achei que o melhor era deixar de pagar e tentar arranjar esquemas de forma a que eles não me possam ir buscar dinheiro, porque se não vou estar a vida inteira a pagar uma coisa… Se fosse a uma pessoa importante, um dos nossos políticos, já tinha prescrito. Mas como sou uma cidadã comum não tem prescrição. Eu fui muito prejudicada, acho que foi muito injusto… Porque quando é justo temos de acartar com as consequências. Mas foi uma coisa mesmo injusta” (cf. NiT, de 28/9/2021).
Depois, disparando contra tudo e todos, menos contra si própria e a sua consciência, Dulce de Jesus culpabiliza a terra onde nasceu, o ex-marido, o banco que lhe bloqueou a conta, o escândalo do BES, a passividade da polícia: “quando voltei à cidade de onde tinha saído derivado dessa situação quis retomar novamente, eles voltaram a atacar e houve outras situações em que me tentavam prejudicar, porque em terras pequeninas nós temos um problema que não nos deixam expandir. As pessoas têm medo que a gente se expanda. Tentam-nos manter ali, a primeira coisa que tentam fazer é cortar-nos as pernas. Eu nunca fui assim, sempre quis crescer. Voltei a sair de lá. E o ter que refazer a minha vida várias vezes causa-nos uma revolta: eu tento fazer as coisas bem mas também não me deixam, e depois quando acabou aquela situação de eu me ter separado e ter visto a polícia completamente inactiva, sem fazer nada, e isso é outra coisa com a qual não me conformo - até porque existia um menor envolvido - e foi nessa altura, quando eu estava mesmo com a corda no pescoço, que vou levantar dinheiro da minha conta poupança, que é minha, e eles não me davam acesso porque existia uma dívida às finanças e eu não podia ir buscar aquele dinheiro. Foi aí que eu disse: com este não vão ficar, já chega. Já me levaram muito, não vão ficar com mais nada. E foi uma coisa feita quase de um dia para o outro. São aqueles ataques que a gente tem de ‘estou farta, acabou’. E foi numa altura em que havia o BES, as pessoas todas à porta a pedir o seu dinheiro, e tudo aquilo me estava a revoltar, porque acho que é injusto. Não têm de ficar com o dinheiro das pessoas. E com o meu achei que não deviam ficar, pronto. E fui lá buscá-lo [risos]”.
Na mesma entrevista, afirma não ter feito mal a ninguém, sendo a negação da vítima um outro expediente clássico das técnicas de neutralização da culpa, especialmente nos crimes against bureaucracies (assaltos a bancos, fraude fiscal, corrupção, etc.) em que, por definição, não existem cadáveres ou gente ferida. “Eu não estou arrependida do ato em si. Primeiro porque nunca fiz mal a ninguém, não coloquei ninguém em perigo nem nunca foi minha intenção fazê-lo. Segundo, porque acho que somos tão, mas tão prejudicados por essas entidades que não tenho pena nenhuma deles. Estou arrependida, sim, é das consequências. Se eu tivesse sabido antes quais eram as consequências, se calhar teria ponderado, teria arranjado outra… mas o que está feito está feito e não há volta a dar”.
O facto, contudo, é que, além das instituições bancárias lesadas, houve funcionários - ou, melhor dito, funcionárias - que jamais esquecerão a experiência de ter uma arma apontada à cara. Uma antiga funcionária do Banif da Parede tem uma recordação do assalto de Dulce muito diferente daquela que esta contou a Júlia Pinheiro: “Ela pôs a arma ao nível dos meus olhos, estava eu sentada, e disse: 'Dá-me o dinheiro ou acabo com a tua vida num minuto'”. Outra das vítimas deu em tribunal um testemunho arrepiante: “Pensei que me ia dar um tiro. Tive medo de morrer.” Em tribunal, ficou provado que dissera logo no primeiro assalto “não armes estrilho se não queres dar cabo da tua vida num minuto!” e a própria Dulce Caroço, aliás, reconheceu ter-se sentido mal, pessimamente, quando percebeu que a funcionária de um dos bancos que assaltou, ao levantar-se para lhe dar o dinheiro, estava grávida de muitos meses.
De todo o modo, parece exagero dizer-se, como fez o Correio da Manhã, de 25/9/2013, que Dulce “aterrorizava bancários em assaltos”. Pior ainda, sem dúvida, foi a sua caracterização como “Viúva Negra”, uma vilã de ficção, sem alma nem coração, o que, tratando-se de uma munida de uma pistola de plástico, que tremia em cada assalto, diz muito sobre as falsas percepções do crime que a imprensa sensacionalista transmite a um auditório ávido de sangue e choque. A realidade, bem mais prosaica, é outra, é a de uma mulher contra mundum, que se define como a “ovelha ronhosa da família” e que, segundo a realizadora Patrícia Müller, tem um estribilho constante, repetido à saciedade: “Vão-se foder! Vão-se foder!”. Pagou por isso, talvez excessivamente, cinco anos na cadeia. Saber que outros, que roubaram bem mais do que ela, nem um dia na prisão estiveram, não serve de álibi nem desculpa, mas permite concluir, sem margem para qualquer dúvida, que o mundo é um lugar estranho - e Portugal mais ainda.
*Prova de vida (38) faz parte de uma série de perfis
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.