'Dopesick': uma outra epidemia na América 

Michael Keaton, Peter Sarsgaard e Rosario Dawson são alguns dos rostos familiares de uma minissérie que retrata a tragédia americana dos opiáceos. Metade drama, metade investigação, <em>Dopesick </em>acaba de chegar ao Disney+.
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Nos primeiros segundos de Dopesick, já sabemos quem é o vilão. Com metade do rosto na sombra, Richard Slacker (Michael Stuhlbarg) dá conta do seu plano para acabar com uma suposta "epidemia do sofrimento", que ele diz ser causada pelo facto de a comunidade médica ter ignorado a dor crónica durante demasiado tempo. Esta cena de abertura da série assinada por Danny Strong indica duas coisas: que estamos perante um drama com preocupações didáticas (não perde tempo em mostrar ao que vem), e com personagens posicionadas, sem ambiguidade, do lado do bem ou do mal (neste caso, o mal chama-se sede de lucro). Richard Slacker, que exibe uma expressão tristonha quase patológica, é o adulto-criança que deseja provar o seu valor à família, detentora da empresa farmacêutica Purdue Pharma. E a forma de o fazer não contempla meios-termos: é preciso substituir a "epidemia do sofrimento" por um fenómeno rentável de opiáceos, através de um medicamento "milagroso" chamado Oxycontin.

Depois do documentário de duas partes The Crime of the Century, lançado em maio na HBO, Dopesick (agora disponível no Disney+) surge como a versão hollywoodiana de uma tragédia real: nos Estados Unidos, são mais de 500 mil as vítimas desta droga sintética, normalizada entre os médicos na década de 1990, por via de um discurso enganador que a apresentava como um fármaco seguro, com uma percentagem muito reduzida de risco de criar vício. Adaptando o livro homónimo da jornalista Beth Macy, a minissérie de oito episódios faz um retrato alargado dos envolvidos na perversa teia de influências. Entre eles, um médico de uma pequena cidade - interpretado por Michael Keaton com uma lhaneza comovente - cujo quotidiano no consultório em nada correspondia a práticas desonestas. Um dia, porém, cai na cantiga de um delegado de propaganda médica e, à primeira oportunidade de ajudar uma jovem paciente, receita-lhe o painkiller que lhe dizem ser inofensivo, se tomado com critério...

A rapariga em causa, Betsy Mallum (Kaitlyn Dever), trabalha nas minas, onde teve um acidente, mas precisa de manter o seu posto por razões familiares complexas de que o médico está a par e compreende. Assim, o gesto benévolo dele melhora o dia-a-dia de Betsy, ajudando a cicatrizar a lesão nas costas, até se transformar numa dependência. Claro.

Para alcançar a totalidade da narrativa à volta deste opiáceo, a série anda para trás e para a frente num friso temporal que indica os anos em que os acontecimentos tiveram lugar. É uma opção que, por vezes, sacrifica o vínculo do espectador com os dramas individuais das personagens, mas que permite ir construindo uma visão informada, com diferentes ângulos. Para além da família Slacker e da sua estratégia agressiva, a que se junta a história de Betsy e do seu médico, os outros intervenientes são dois advogados do Departamento de Justiça americano, interpretados por Peter Sarsgaard e John Hoogenakker, que investigam a trajetória do Oxycontin, desde a sua comunicação inicial até aos efeitos sentidos na comunidade anos mais tarde. Enfim, para o quadro ficar completo só falta mencionar uma agente da DEA (Agência de Combate às Drogas), aqui Rosario Dawson em ação, que antes desses advogados já tinha tentado responsabilizar a Purdue Pharma por uma epidemia de dependência. Voltas e mais voltas, só em 2007 é que a empresa farmacêutica foi obrigada a pagar uma multa de mais de 600 milhões de dólares.

Com os dois primeiros episódios realizados pelo veterano Barry Levinson (Encontro de Irmãos), Dopesick começa por ser exaustivo na abordagem da conceção comercial do fármaco, definindo-se porventura demasiado cedo os heróis e vilões da narrativa. Mas nessa linguagem direta e carregada de detalhes históricos não se perde o sentido de urgência, em que o fator humano vai ganhando terreno. Sobretudo, procura-se aqui responder a uma necessidade de transmitir a realidade dramática por trás dos números conhecidos, essa angústia secreta que ao longo dos anos e ainda hoje é devastadora para muitos lares americanos.

Por essa razão, o que resulta melhor na série é a história das pessoas comuns afetadas pela droga sintética, com enfoque no médico bem-intencionado de Michael Keaton (ele que é também um dos produtores executivos) e na jovem que só queria resolver a dor física para ganhar força psicológica no seio de um ambiente familiar conservador. São estas personagens que garantem a estabilização da verdade emocional dos episódios, dentro do constante vaiv´em da agulha do tempo.

dnot@dn.pt

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