Se é verdade que nem mesmo a crueza desta pandemia retirou aos humanos o desejo do paraíso, então o filme de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes - seleccionado para a Quinzena dos Realizadores - distingue-se como maravilhosa ilustração da nossa obstinação. E da nostalgia que a alimenta..Chama-se Diários de Otsoga e acompanha um trio de personagens - Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro - que, precisamente em cenário de pandemia, como se diz na sinopse oficial do filme, "constroem juntos um borboletário". O que a partir daí acontece envolve um misto de transparência e mistério que, creio, agora como no momento da estreia do filme (agendada para 19 de agosto), importa preservar, dando inteira liberdade ao olhar de descoberta do espectador..Falemos apenas da transparência. E de uma espécie de reconciliação melancólica com a natureza, ou melhor, com uma certa ideia de natureza. Dir-se-ia que Crista, Carloto e João são herdeiros tardios de Robinson Crusoé, náufragos das nossas queridas "sociedades de consumo", que vivem o isolamento imposto pela pandemia como uma redescoberta da possibilidade de estabelecer alguma relação com os elementos naturais. A cena de construção do borboletário possui, assim, uma beleza muito especial: por um lado, pressupõe a sedução abstracta de qualquer coisa de natural e primordial ("Herdeiros de Nabokov", seria, talvez, um subtítulo serenamente perverso); por outro lado, nela assistimos a gestos de um trabalho cândido que não pertence a nenhuma economia, a não ser afectiva..Aliás, quando identificamos "Crista, Carloto e João" como personagens do filme, importa acrescentar que actores e personagens partilham os nomes próprios. Estão ali a documentar a sua própria ficção, numa simbiose que, definitivamente, supera a dicotomia que, de acordo com um vício modernista, nos obrigava a escolher entre o "cinema" e a "vida"... Não há diferença e, mais uma vez com a prudência de quem não quer revelar demais da "trama" dos acontecimentos, podemos acrescentar que Diários de Otsoga é também um filme sobre o que significa fazer um filme. Ou ainda: viver através de um filme. Nesta perspectiva, podemos prever que, através das suas singularidades cinematográficas e cinéfilas, Diários de Otsoga será também, por certo, um dos títulos de Cannes a ajudar-nos a repensar os factos e o imaginário da pandemia..No texto de apresentação da Quinzena dos Realizadores recorda-se que "todos os anos, a sua selecção destaca filmes sem limitações de género, formato, duração ou origem geográfica." E não há dúvida que, depois de mais de meio século (esta será a 53ª edição), a secção paralela à selecção oficial do Festival de Cannes tem-se distinguido pela capacidade de dar a ver o cinema, não como uma repetição automática de valores consagrados, antes como um paciente, por vezes angustiado, exercício de risco e experimentação. Para nos ficarmos por um exemplo emblemático, lembremos que Spike Lee, presidente do júri que irá atribuir a Palma de Ouro de 2021, teve a sua revelação internacional em Cannes, na Quinzena de 1986, com She"s Gotta Have It/Os Bons Amantes.