'Diários de Otsoga'. Agosto sob o signo de Pavese
Filmar a delicadeza do gesto de apanhar fruta como Eric Rohmer o filmou em O Joelho de Claire, com um Jean-Claude Brialy "apanhado" pelo ponto nevrálgico da perna dessa jovem de saia em cima do escadote à beira da árvore. É de momentos simplesmente cinematográficos como este - a colheita da fruta enquanto primitivo ato romântico - que se faz Diários de Otsoga, por sinal, um filme que, à semelhança do referido título de Rohmer, assenta numa sequência cronológica de dias de verão... só que com a ordem invertida (o que é Otsoga senão Agosto ao contrário?). Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes não entram pelo labor intelectual dos diálogos rohmerianos, acenam antes às variações típicas do seu equivalente coreano, Hong Sang-soo, com um trio de atores que responde à fixação de um tempo específico: aquele querido mês de agosto que a pandemia carimbou com os fantasmas do confinamento.
Uma rapariga e dois rapazes numa quinta fazem coisas juntos - podia ser esta a sinopse de Diários de Otsoga. Para além de apanharem fruta, Crista Alfaiate, Carloto Cotta e João Nunes Monteiro dançam, constroem um borboletário e andam de trator. São figuras de uma fantasia literária a partilhar uma espécie de quotidiano, unidas por uma ideia afetiva de trabalho, e sobretudo por um regresso a algo próximo da configuração da natureza. Como se o cinema precisasse dela para reencontrar as suas bases criativas.
CitaçãocitacaoLúdico, sereno, levemente triste no testemunho de um contexto, mas feliz na sua expressão minimalista, Diários de Otsoga faz-nos saborear a ociosidade
Nesse sentido, estamos também perante um filme pragmático, que põe às avessas não só a cronologia e a palavra "agosto", como inverte a atitude de se cruzar os braços, mesmo quando não há guião. Um filme que incorpora ainda um discreto lirismo ao partilhar com a sua realizadora grávida uma linguagem de gestação; no fundo, o sentimento de uma rodagem levada adiante numa altura em que não era suposto fazer-se filmes.
O cruzamento entre o que se passa à frente e atrás da câmara não é um jogo estranho ao cinema de Miguel Gomes, mas aqui há uma beleza de conto de estio, com um toque de natureza morta, que parece vir de uma alusão vaga a Cesare Pavese (Trabalhar Cansa, O Belo Verão, Férias de Agosto), autor a certa altura mencionado por Maureen Fazendeiro como inspiração, numa cena em que ela conversa com Gomes e o escuta sobre a sua vontade de filmar um trator, só porque sim... Talvez se possa ver neste contraste do que cada um dos dois quis trazer para o filme o próprio ADN do amor de se fazer cinema em regime de improviso. Pequenas ideias atiradas ao ar, um prego aqui, outro ali, a construção de um filme-borboletário para contar como foi.
Lúdico, sereno, levemente triste no testemunho de um contexto, mas feliz na sua expressão minimalista, Diários de Otsoga faz-nos saborear a ociosidade sempre com um pé na estranheza do novo real, que mexe com toda a equipa (conte-se com um brilharete do diretor de som, Vasco Pimentel). Seja como for, a rodagem é um pedaço da vida a acontecer, a fruta a amadurecer nas árvores, uma piscina para limpar, uma dança, uma troca de olhares, um beijo, uma barriga a crescer. Não necessariamente por esta ordem.