De Moçambique, com arte e emoção

"Sinergia de Emoções", a partir deste sábado no Espelho d"Água, em Lisboa, dá a ver o trabalho de duas jovens artistas plásticas moçambicanas. Mas Taíla Carrilho e Nália Agostinho também refletem sobre a situação das mulheres no seu país.
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"Esse casaco é maningue nice", diz ao chegar Nália Agostinho sobre a indumentária da jornalista, o que esta prontamente agradece porque, em bom moçambicano de Maputo, não pode haver melhor elogio. Com Taíla Carrilho, Nália forma o duo de artistas que inaugura este sábado, no espaço Espelho d"Água, em Lisboa, a exposição "Sinergia de Emoções". Ambas vêm de Moçambique e o comentário sobre um casaco particularmente colorido não nasce apenas da cortesia de quem chega onde é esperado, mas também da extrema atenção às cores e formas, sobretudo às do universo feminino, que caracteriza o trabalho e o modo de estar de ambas.

"Sinergia de Emoções" marca o primeiro trabalho conjunto de Taíla e Nália, que expõem também pela primeira vez em Portugal. Em foco estão "as questões de género, discriminação e exclusão social das mulheres em Moçambique em particular, e no continente africano como um todo, onde se avançou alguma coisa" mas, como as duas afirmam, "muito longe de padrões aceitáveis".

Esta parceria, conta Taíla, nasceu recentemente, quando ambas se conheceram "em momentos de grande perda nas nossas vidas, que nos fizeram questionar sobre temas como a morte, a aceitação e o luto, o que nos uniu com muita profundidade." Por isso, esta exposição marca, diz, "uma certa redescoberta de nós próprias, ao mesmo tempo que refletimos sobre o papel das mulheres em Moçambique." Um papel que ainda não é o devido. "Mesmo na nossa geração, embora já haja algum espaço para as mulheres na Cultura (até porque estão em Moçambique muitos estrangeiros e isso muda muito as perspetivas), as coisas estão longe de ser o que deviam. Sentimos que estamos aqui a representar o nosso lugar de artistas moçambicanas."

Este olhar é partilhado por Nália. "Estávamos a passar por situações parecidas a nível emocional, envolvendo dor, luto e crescimento, e estabeleceu-se uma ligação profunda e natural entre as duas. Esta exposição representa o aceitar de todos os sentimentos e seguir em diante, como se renascêssemos sempre mais fortes. Ao mesmo tempo, à medida que vamos trabalhando, descobrimos que há muitas mulheres nas mesmas situações. Com esta exposição, damos voz a muitas mulheres moçambicanas que ainda não são ouvidas, mesmo as da nossa geração. Creio que o nosso trabalho são mais do que peças bonitas ou coloridas. É a nossa alma que está aqui."

Ambas vêm de um meio desde sempre ligado às artes e têm noção da vantagem que isso lhes deu. Taíla (filha do arquiteto Júlio Carrilho, falecido em Dezembro passado, e irmã do ilustrador André Carrilho) diz ter começado a gostar das coisas que o pai lhe ia mostrando - música clássica, desenho, pintura. Mas chegada à altura das decisões, admite que não quis estudar "arquitetura porque não quis ser aluna do pai logo no primeiro ano" e foi estudar Design Gráfico para a África do Sul (na Cidade do Cabo). Depois disso, e criou uma marca de mobiliário com uma amiga portuguesa, a Room Gallery, só com mão de obra e matéria-prima local. Em 2020 lançou uma linha de acessórios, sobretudo para mulher, embora, acrescente "já vamos tendo clientes masculinos."

Nália assume que foi também a infância, vivida em Maputo nos bairros da Polana e Chamanculo, que lhe desenvolveu o gosto pelas texturas, padrões e cheiros. Ao pai, médico, muito interessado pelo universo da criatividade infantil, deve o amor às artes plásticas e à música (frequentou e completou a Escola Nacional de Música): "O meu pai falava-me muito do meu avô, que foi tocador de percussão e dançarino na província da Zambézia. Depois, muito pequena, estava sempre a recortar papéis ou a pintar, e o meu pai guardava tudo. Posso dizer que foi a pessoa decisiva para eu me tornar o que sou hoje, apesar de ter morrido cedo, quando eu tinha apenas 15 anos." E conclui, emocionada: "Foi ele que plantou todas as sementes que estão a desabrochar agora, quase 20 anos depois."

Igualmente decisiva para Nália foi a passagem por Itália como estudante de Ciências Políticas (em Trento) e depois a trabalhar na área dos Negócios. "O contacto com tanta arte na Europa, e sobretudo em Itália, fez-me ver a possibilidade de crescer rodeada pelo que há de melhor a este nível. E perdi mais o medo, lancei-me, passei dos croquis e dos esboços feitos como hobby para a profissionalização." Hoje, tem uma pequena galeria em Maputo e sente-se uma testemunha privilegiada do modo como o mundo das artes está a expandir-se no país, tanto em número de artistas, como de visitantes interessados.
Nesta "Sinergia de Emoções", Nália e Taíla dão-nos a ver 20 obras (pinturas, desenhos e ilustrações com acrílico, pastel de óleo, carvão, tinta da China e aguarela), complementadas por poesia e prosa. A exposição pode ser visitada até 20 de Março.


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