De Ed Sheeran a Salvador Sobral, passando por Rosalía - A banda sonora da década

Do hip-hop erudito de Kendrick Lamar e Slow J às canções perfeitas de Ed Sheeran, passando ainda por surpresas como Salvador Sobral ou promessas como Gaspar Varela ou Billie Eilish, é sempre uma tarefa ingrata condensar dez anos de música numa única lista.

E num ápice, dez anos se passaram. Durante este período partiram alguns dos nomes que ajudaram a fazer da música popular uma parte indissociável da vida de todos nós: gente como Gil Scott-Heron, Whitney Houston, Lou Reed, David Bowie, Leonard Cohen, George Michael, Prince ou Aretha Franklin, cujas canções há muito tornaram imortais. Pelo contrário, esta década, que igualmente popularizou as plataformas de streaming, modificando por completo a forma de ouvir música e ditando o fim da pirataria que, no passado, quase aniquilou a industria, também deu a conhecer novos artistas, como os dez - cinco nacionais e cinco internacionais - selecionados pelo DN para compor a banda sonora da década que agora finda. Como critério, apenas o facto de terem editado o álbum de estreia entre 2010 e 2019, porque o resto, como tudo o que envolve a arte e o gosto de cada um, é meramente subjetivo.

Kendrick Lamar

Foi em abril do ano passado, que o rapper nascido há 32 anos em Compton, Califórnia, fez história, ao tornar-se no primeiro artista de música popular a conquistar o tão cobiçado prémio, normalmente atribuído à música erudita ou mais ocasionalmente ao jazz. Um momento único não só para o músico, mas especialmente para o hip-hop, cada vez mais reconhecido como a banda sonora da cultura jovem do século XXI. Kendrick Lamar começou a fazer música na casa da mãe e cedo chamou a atenção, enquanto membro do grupo de hip hop Black Hippy. O primeiro álbum a solo, Section.80, é editado em 2011, através da plataforma iTunes. No ano seguinte, lançou Good Kid, M.A.A.D City, que lhe valeram sete nomeações para os prémios Grammy de 2014, incluindo nas categorias de Artista Revelação e de Álbum do Ano. Seria no entanto com To Pimp a Butterfly, lançado em março de 2015, que Kendrick Lamar se tornaria uma estrela planetária, sem nunca abdicar dos princípios da sua música, conhecida pelas letras de carater pessoal, nas quais aborda temas hoje habitualmente fora da agenda da maioria dos artistas com quem partilha os tops mundiais, como política, raça ou religião. O mais recente capítulo discográfico, Damn, foi editado em 2017 e contou com a participação de estrelas como os U2 ou Rihanna. Depois de duas anteriores visitas a Portugal, ao Primavera Sound (2014) e ao Super Rock (2016), Kendrick Lamar está de regresso no próximo verão, para atuar a 8 de julho no Nos Alive, que até acrescentou mais um dia ao cartaz para poder contar com o rapper americano.

The Idles

Já lhe foi decretado o óbito vezes sem fim, mas, de tempos-a-tempos, surge uma banda assim, que faz renascer o punk - e como consequência o rock, também ele há muito numa moribunda letargia. No entanto, chamar apenas punk ao que os Idles fazem é bastante redutor, como se comprova ao ouvir o aclamado segundo disco de originais, editado no ano passado e que elevou o quinteto de Bristol ao estatuto de (quase) estrelas planetárias - como se comprovou na última edição do Nos Alive. O disco chama-se Joy as an Act of Resistence e o título resume na perfeição a música dos Idles, que com apenas um álbum (o anterior Brutalism, de 2017) conseguiu a proeza de reinventar a herança do punk britânico à luz de um futuro cada vez mais incerto e confuso, tornando-o novamente vital - musical e politicamente. Quando surgiram, há cerca de seis anos, com o ep de estreia Welcome, foram de imediato brindados com epítetos como "melhor banda de punk britânica" (como se houvesse outra) ou simplesmente "a banda do momento", mas, mais uma vez, isso é pouco, muito pouco, para resumir a música destes rapazes. Herdeiros de uma linha que é também comum a bandas como os americanos Pixies e Black Flag ou os compatriotas Gang of Four, os Idles também têm o talento de transformar em arte a crueza do punk e do hardcore, ao mesmo tempo que apontam a todo o tipo de preconceitos: machismo, nacionalismo ou políticas anti-imigração.

Billie Eilish

De tempos-a-tempos aparecem artistas assim, para nos lembrar que o talento não tem idade e que maturidade pouco tem a ver com a data de nascimento. A nova geração de adolescentes que deu a conhecer ao mundo ativistas como Greta Thunberg ou Emma Gonzalez, também já tem o seu ídolo musical. Dá pelo nome de Billie Eilish e tal como os exemplos atrás referidos, o seu aparecimento veio baralhar conceitos e estereótipos, provocando as mais diversas reações e também neste caso, nem sempre positivas. Mas a jovem artista de LA (completou há poucos dias 18 anos) não se parece incomodar com isso, bem pelo contrário. Começou a escrever canções ainda criança e em 2015, com apenas 14 anos, lançou através da plataforma SoundCloud o single de estreia Ocean Eyes, recentemente certificado com a marca de disco de platina. O Álbum de estreia, When We All Fall Asleep, Where Do We Go? Surgiu finalmente em março deste ano e apenas veio confirmar todo o talento e a sensibilidade que há muito se anunciava online. O disco atingiu de imediato o primeiro lugar dos tops de venda nos Estados Unidos e na Inglaterra, o que faz de Billie Eilish a primeira artista nascida no século XXI a conseguir tal feito.

Rosalía

Formada em Flamenco pela Escola Superior de Música de Barcelona, esta cantora catalã de 26 anos apaixonou-se por este estilo musical quando era ainda adolescente, após ouvir na rádio um tema de Camarón de la Isla. Deu-se a conhecer ao mundo em 2017, com o álbum Los Ángeles, um projeto a meias com o produtor e músico espanhol Raül Refree, que lhe valeu então a nomeação para um Grammy Latino, na categoria de artista revelação. Um ano bastou, todavia, para se tornar numa confirmação, à boleia do disco de estreia em nome próprio, El Mal Querer, com o qual revolucionou o flamenco, tornando-o tão pop quanto experimental, ao misturá-lo com estilos como R&B, hip-hop, trap ou música eletrónica.

Ed Sheeran

Se dúvidas houvesse a respeito do talento destes cantor e músico inglês para escrever canções pop perfeitas como Thinking Out Loud, Perfect ou Shape of You, as mesmas são dissipadas pelos números dos seus três discos, + (2011), × (2014) e ÷ (2017), que venderam mais de 150 milhões de exemplares em todo o mundo e lhe valeram uma longa lista de prémios, mais de um centena, incluindo quatro Billboard Awards, outros tantos Brit Awards e igual número de Grammys. Em 2015, fez novamente história, ao esgotar três noites seguidas no estádio de Wembley, algo que entretanto se parece ter tornado rotineiro, pois apenas três anos depois voltou a fazê-lo, mas desta vez por quatro noites. Nessa mesma digressão esgotou também, duas vezes, o Estádio da Luz, em Lisboa, apresentando-se, como habitualmente, sozinho em palco, valendo-se apenas das canções.

Salvador Sobral

Se por mais não fosse, a inédita vitória no festival da Eurovisão era motivo mais que suficiente para Salvador Sobral merecer estar nesta lista. Afinal, como o tempo se virá a encarregar de demonstrar, Amar Pelos Dois é mesmo uma daquelas canções clássicas, que sobrevive a tudo, até a sobre-exposição a que foi sujeita, tal como o seu intérprete. Sabe que será para sempre o "eterno vencedor da Eurovisão", mas sentiu necessidade de seguir em frente e a melhor forma de o fazer foi com um novo disco, o segundo da carreira, mas o primeiro a ser editado, no início deste ano, depois da ressaca eurovisiva. Chama-se Paris, Lisboa e nele se apresenta um novo Salvador Sobral, "luminoso e colorido", que tanto vagueia pelo jazz, pela canção francesa, pela sua querida música da América Latina e mesmo pela pop sem qualquer tipo de pudor, celebrando, literalmente, uma nova vida, depois de debelados os conhecidos problemas de saúde que lhe chegaram a colocar a vida em risco.

Gaspar Varela

Era ainda criança quando começou a aprender a tocar guitarra portuguesa, com um único desejo em mente, poder um dia acompanhar em palco a bisavó, Celeste Rodrigues. O sonho concretizou-se em 2015, no teatro São Luiz, aquando do concerto de celebração dos 70 anos de carreira da fadista e repetir-se-ia novamente há dois anos, no teatro Tivoli. Costuma por isso dizer que o seu gosto pelo fado "é genético" e está-lhe bem entranhado, como se comprovou no disco de estreia, Gaspar, editado no final de 2017 e que apresentou num espetáculo a solo no CCB. Encontra-se neste momento, com apenas 16 anos, em digressão com Madonna, que se tornou amiga de Celeste Rodrigues aquando da mudança para Portugal e agora convidou o bisneto desta para a acompanhar pelo mundo. O seu professor de sempre, Paulo Parreira, um dos mais reconhecidos intérpretes de guitarra portuguesa, acompanhante de nomes como Gisela João, António Zambujo, Camané ou Carlos do Carmo, não tem dúvidas: "Tem uma alma enorme, ao nível de um Carlos Paredes e tem tudo na mão para ser o grande concertista da guitarra portuguesa".

Slow J

Quando regressou de Londres, onde estudou engenharia de som, poucos sabiam quem era João Batista Coelho e muito menos conheciam o seu alter-ego musical, Slow J, que se daria a conhecer nesse mesmo ano de 2013 com o ep The Free Food Tape. O EP, composto por apenas sete músicas, foi o suficiente para começar a criar à sua volta um pequeno burburinho, cada vez mais ruidoso, à medida que a sua música ia extravasando o nicho inicial do hip-hop onde tudo começou, criando um fenómeno de culto como há muito não se via na música portuguesa. Desde logo ali deu para ver que Slow J era muito mais que um simples rapper e o álbum de estreia, The Art of Slowing Down, editado em 2017, apenas veio confirmar todas as expectativas criadas à volta do músico, cantor e produtor setubalense. Tal como a sua música, que viaja sem pudores pelos mais variados ambientes estéticos e sonoros, também Slow J é difícil de catalogar enquanto artista. Filho de um pai angolano e de uma mãe portuguesa, a mistura está-lhe no sangue, mas a forma natural e sem preconceitos como consegue baralhar tudo isto para construir um disco perfeito, como fez novamente este ano, com o segundo registo de originais You Are Forgiven, lançado de surpresa em setembro, essa tem outra génese e chama-se talento.

Gisela João

Nasceu em Barcelos, há 36 anos, quando se tornou a mais velha de sete irmãos. Bastante longe, portanto, da Mouraria, onde morou, quando chegou a Lisboa, depois de alguns anos a viver no Porto, para onde foi estudar design de moda, mas acabou a cantar numa casa de fados da Ribeira. Um trajeto bastante distante, não só geograficamente, como se vê, da fadista tradicional. Já na capital, começou por encantar o público nas casas mais tradicionais do Sr. Vinho ou a Mesa de Frades, mas também em locais mais "profanos", onde o fado era um corpo estranho, como a Fábrica do Braço de Prata e o Lux, onde atuou, primeiro, na mesma noite de Nicolas Jaar e depois a solo, atraindo para o fado novos públicos, até então afastados da denominada "canção nacional". O primeiro disco, homónimo, surgiria em 2013 e ao contrário do que se poderia esperar, nele mergulhou no fado tradicional, ganhando de vez um lugar ao sol, tanto em Portugal como no estrangeiro. Seguiu-se a consagração nos coliseus, alicerçada por momentos como o ciclo de três espetáculos Caixinha de Música, no Teatro São Luiz, em Lisboa, onde interpretou temas de Nick Cave, Violeta Parra, Amy Winehouse, Leonard Cohen. O segundo disco, Nua, lançado em 2016 e no qual interpretou letras e músicas de gente tão diferente como Cartola, Carlos Paião, Alexandre O'Neil, Capicua ou Alain Oulman apenas confirmou tudo o que se esperava da "grande fadista do século XXI", como um dia a classificou Miguel Esteves Cardoso.

Luís Severo

Tinha "cinco ou seis anos" quando pela primeira vez pediu aos pais para aprender a tocar piano. Chegou a frequentar o conservatório de Odivelas, onde vivia, mas foi já no secundário, em plena explosão do do it yourself na internet, que criou uma página de My Space, onde se deu a conhecer como Cão da Morte, um nome mais adequado a uma banda de punk-hardcore e não tanto ao cantautor melancólico e romântico no qual alguns ouvidos mais atentos já começavam a reparar. O primeiro álbum, Cara de Anjo, foi lançado em 2015, pouco tempo depois de concluir o curso de sociologia. Tinha 22 anos e foi nessa altura que decidiu começar a viver da música. Em 2016 surgiu o muito elogiado segundo álbum homónimo e o artista de culto começa finalmente a ter um público só dele, que lhe enche os concertos e canta do princípio ao fim letras como há muito não se ouviam na música portuguesa. Regressou aos discos em maio, com O Sol Voltou, confirmando - ou melhor, superando - todas as expetativas criadas nos dois trabalhos anteriores, no modo como alargou o seu universo a novos territórios musicais e poéticos mais luminosos. Aos 26 anos, Luís Severo é hoje um músico completo, que prolonga a vida das canções muito além das palavras, com a simplicidade das composições a dar agora lugar a instrumentações mais complexas. Quanto à temática das mesmas, continua por lá tudo o que fez dele um dos maiores poetas da nova música portuguesa.

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