Não há um único quadro de Dalí visível neste filme sobre...Dalí! 
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"Dalíland". Nem sombra de Dalí

Salvador Dalí em Nova Iorque em 1973 ou os detalhes e azáfama da montagem de uma exposição. Dalíland, de Mary Harron, chega tarde e confirma a sua fama de desastre completo. E não é Ben Kingsley em registo canastrão a salvar a coisa.
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O mito acima da verdade - numa história sobre o declínio de Salvador Dalí esse podia ser o caminho. Por muito que Mary Harron ostente o fascínio pelo retratado, o seu filme é um mero biopic conformista que finge ser outra coisa. Na verdade, é de uma bisbilhotice fanfarrona que desanima quem quer entrar na tal terra de Dalí que o filme alude. Há mesmo um sensacionalismo tolo na exposição da peculiaridades da vida íntima do pintor que não nos faz levar nada disto a sério.

Aliás, esta é mais uma prova de que a cineasta parece ter entrado numa fase de finalização de encomendas, sem brio, sem toque pessoal, bastante longe dos tempos das suas primeiras e exaltantes obras: Ela Baleou Andy Warhol (1996) e Psicopata Americano (2000). E o tom anónimo desta viagem à obra e vida de Dalí é consubstanciado pela fórmula de argumento que o orienta: o olhar de um aprendiz perante o mestre, neste caso um jovem admirador, o assistente de arte James Linton (interpretado por Christopher Briney, espécie de assustador sósia de Michael Pitt e protagonista da série da Amazon, The Summer I Turned Pretty), que simboliza uma amálgama de jovens que sempre circundaram a vida do espanhol. Um olhar sempre de espanto e de iniciação, quer pelas festas e orgias durante uma preparação de exposição em Nova Iorque, quer pelo testemunho da intempestiva relação com Gala, a excêntrica esposa do artista que nesse período estava com romance aberto com um jovem ator da Broadway. É por esse filtro que surge Salvador Dalí, um Dalí assexuado e mortificado por ciúmes, alguém dependente da gestão financeira da mulher e explorado pelos demais. Um Salvador Dalí que nunca deixa de criar e fomentar uma fauna de fãs que é apelidada de Dalíland.

Se é no território da incompreensão artística que cresce o território da sua validade, o filme não faz justiça à essência de Dalí. O bigode de Ben Kingsley é tão falso como decorativo e ficamos sempre com aquela sensação de que o ator britânico parece estar em espiral de mandamento cabotino, por muito que a figura de Dalí convocasse todo o artificialismo. Em triste verdade, temos cinema sem surrealismo para evocar o rei do surrealismo. E, passo em falso, temos os flashbacks preguiçosos da juventude de Dalí(a sua versão jovem é interpretada sem freios pelo “cancelado” Ezra Miller) para explicar “tudo”. Harron, inadvertidamente, fez um objeto para nos distanciarmos do homem e do artista, precisamente aquilo que Daaaaaali!, de Quentin Dupieux, evitou - estreou recentemente e foi uma das boas surpresas da Mostra de Veneza. A alquimia entre o visível e o sensorial é deitada por terra por uma cineasta que dentro desta atração pela loucura e excentricidade está, afinal, à procura do conforto daquilo que é mais certinho.

Um filme romântico na génese mas totalmente tosco na forma. Dalíland habita desonestamente o mundo que propõe. Cinema paparazzo da memória. Convém mesmo recusar... Este fracasso deve fazer com que Mary Harron volte à “segurança” da realização da ficção televisiva.

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