My Want of You Partakes of Me: um verdadeiro documentário filosófico.
My Want of You Partakes of Me: um verdadeiro documentário filosófico.

Curtas Vila do Conde - Para redescobrir o “cinema experimental”  

A 32.ª edição do Curtas Vila do Conde arranca hoje com um filme-concerto de João Gonzalez. Serão dez dias de oferta diversificada, incluindo mais de duas centenas de produções provenientes de 45 países - este ano, a secção experimental justifica alguns destaques especiais.
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Como sempre, no mês de julho, Vila do Conde reafirma a sua condição de capital portuguesa das curtas-metragens: a partir de hoje (até dia 21), a 32.ª edição do Curtas Vila do Conde apresenta um programa diversificado que tem os filmes mais “pequenos” como fulcro da sua agenda, sem esquecer, como é tradição, algumas derivações pelo espaço das longas-metragens e também das matérias musicais.

Música, precisamente, será assunto fundamental na abertura, numa sessão em formato de “filme-concerto” (hoje, 20h00): na dupla condição de realizador e compositor, João Gonzalez regressa ao Curtas para apresentar os seus filmes (incluindo Ice Merchants, o ano passado nomeado para os Óscares) com novas bandas sonoras. Também presença regular em Vila do Conde, Rodrigo Areias irá revelar o seu novo trabalho, A Pedra Sonha Dar Flor (dia 14, 17h30), sobre a obra do jornalista e escritor Raul Brandão - a projeção será acompanhada pelo músico vimaranense Dada Garbeck.

Quem se estreia nos formatos longos é Diogo Costa Amarante, com Estamos no Ar - ver entrevista nestas páginas. Várias secções serão dedicadas a autores de obras que se definem pelas singularidades de temas e narrativas: é o caso do francês Bertrand Mandico e da atriz Elina Löwensohn, nascida na Roménia e radicada nos EUA, cuja colaboração reflete a procura de inusitados caminhos expressivos, a par do espanhol Alberto Vázquez, criador de obras de animação com componentes enraizadas no fantástico e no género de terror.

Isto sem esquecer que o festival mantém uma secção competitiva repartida pelos domínios nacional e internacional - o respetivo júri será constituído por Laura Ferrés (cineasta espanhola), Jing Haase (programadora e representante do Swedish Film Institut), Laure Saintmarc (francesa, montadora da maioria dos filmes de Bertrand Mandico), Miguel Ribeiro (programador da Casa do Comum, Lisboa) e Caroline Maleville (programadora da Quinzena dos Cineastas, em Cannes). Noutras áreas competitivas, cada uma com um júri diferente, estarão os filmes de escolas, os vídeos musicais e os projetos experimentais - ao todo, o Curtas organiza 83 sessões em que serão projetados 239 filmes provenientes de 45 países.

Cinema & filosofia

A secção experimental justifica uma atenção especial, quanto mais não seja porque nela podemos tentar descobrir propostas capazes de desafiar modelos convencionais e estereótipos narrativos. O lugar-comum festivaleiro tende a definir experimental como algo que se “afasta” daquilo que chamamos realidade, propondo registos ou mundos “alternativos” - e é um facto que a banalidade de muitas experiências digitais cultiva, de modo mais ou menos mercantil, esse lugar-comum. Ora, curiosamente (aliás, felizmente), no Curtas 2024 encontramos alguns títulos em que a lógica experimental aposta na imaginação do espectador, potenciando a sua relação com essa realidade.

Nesta perspetiva, importa sublinhar a proposta de Man Number 4 (Reino Unido), de Miranda Pennell, filme de apenas 10 minutos que se poderá definir como uma leitura videográfica, obcecada pela paradoxal abstração do pixel. Leitura de quê? Pois bem, de algo muito concreto: uma fotografia no mínimo perturbante obtida em Gaza, em dezembro de 2023. A problematização daquilo que vemos, e das ideias que geramos através do modo como vemos, faz lembrar o génio de um legítimo antepassado: a curta (ainda mais curta: 2 minutos) Je Vous Salue, Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard, elaborada a partir de uma imagem da guerra da Bósnia.

São também os mistérios do ver e não ver que pontuam Sarcophagus of Drunken Loves (França/Líbano), de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, partindo de uma evidência quotidiana, assim resumida na sinopse oficial: “Hoje em dia, no Líbano, os cortes de eletricidade não são um acontecimento, são o novo estado das coisas” - são imagens recolhidas no interior do Museu Nacional de Beirute, com luzes de telemóveis, expondo as estátuas do passado como verdadeiros fantasmas do presente.
Digamos que se trata de reformular a questão mais primitiva do cinema: como registar o mundo à nossa volta? O mesmo se dirá, aliás, de títulos como Becoming Landscape (Canadá/Bélgica), de Eva Giolo, exaltando a ilha do Fogo canadiana como um lugar de realismo e transcendência, ou Terminal Island (EUA), de Sam Drake, encarando as paisagens californianas como entidades que desafiam a gestação da própria imagem cinematográfica.

O destaque obrigatório vai para o admirável My Want of You Partakes of Me (Reino Unido), uma curta quase longa (55 minutos) com assinatura de Sasha Litvintseva e Beny Wagner, gerada no âmbito da EMAP (European Media Art Plataform). Trata-se, aliás, de um filme já exibido entre nós, em maio deste ano, em Braga, na programação da Bienal INDEX de Arte e Tecnologia.

Ligada a um projeto global de discussão das interações entre os humanos e o meio ambiente (vale a pena visitar o respetivo site: emare.eu), My Want of You Partakes of Me é uma tapeçaria de episódios ligados por um reconhecimento óbvio, mas profundamente enigmático: somos o que somos através dos nossos corpos; mais ainda, os nossos corpos vivem em permanente transformação, integrando de tudo um pouco, dos alimentos às ideias mais abstratas. Em resumo: uma verdadeira celebração do cinema como máquina de vida, entre natureza e tecnologia, em que encontramos, ou arriscamos formular, as leis incompletas da nossa existência - como um ensaio filosófico em forma de documentário.

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