Cruella. O Diabo no feminino

Com lançamento previsto para maio, "Cruella", com Emma Stone, é mais uma produção Disney apostada em refazer a herança dos seus desenhos animados: afinal, o artifício do espetáculo não pode dispensar a dimensão humana dos atores.
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Rezam as crónicas que Dodie Smith (1896-1990), a autora inglesa de literatura infantil que escreveu Os 101 Dálmatas, se inspirou nos seus próprios cães: não eram 101, mas "apenas" nove... Ao que parece, uma amiga, fascinada pela pelagem branca com manchas pretas dos cachorros, terá observado que podiam servir para fazer um belo casaco de peles. Regra geral, esta anedota é contada sem que se discuta a desconcertante inocência da amiga... O certo é que tanto bastou para que a escritora inventasse uma personagem obcecada por peles, casacos e dálmatas - tinha nascido Cruella de Vil.

A personagem possui aquela sedução ambígua que outro inglês, Alfred Hitchcock, nos ajudou a compreender: não é o herói imaculado, mas sim o "vilão" que determina o "sucesso" de um filme. Ou ainda: através de um processo catártico bem conhecido dos contadores de histórias, identificamo-nos com os "maus (e as más) da fita", mesmo que, no plano moral, não possam deixar de suscitar a nossa condenação. De tal modo que um dos trunfos dos estúdios Disney para a insólita "temporada" de reabertura das salas em tempo de pandemia é, precisamente, uma derivação da história clássica de Dodie Smith, recuando no tempo e acompanhando a transformação da jovem Estella de Vil na implacável Cruella - intitula-se apenas Cruella, tem Emma Stone como protagonista e deverá chegar aos ecrãs de todo o mundo no final do mês de maio (dia 27, em Portugal).

"Que cãezinhos maravilhosos. Davam lindamente com o meu carro e o preto e branco do meu cabelo", diz a sofisticada Cruella. Ela é, afinal, uma esteta com requintes de malvadez, dimensão que a escritora, com contundente precisão literária, deixou inscrita no próprio nome da personagem - lembremos apenas que de Vil é um óbvio jogo com as letras de "devil" (diabo).

Para Emma Stone, este parece ser um novo teste às suas capacidades de liderar um filme, sobretudo um filme que, sejam quais forem os respetivos méritos, se apresenta como emblema do imaginário e do entertainment segundo a fábrica Disney. Entre os momentos marcantes da sua carreira, encontramos, por exemplo, a ironia dramática de Birdman (2014), a tentativa de reinvenção do musical clássico em La La Land (2016), numa composição que lhe valeu um Óscar, ou a recriação sarcástica do século XVIII, em A Favorita (2018). Dir-se-ia que, agora, com Cruella, se trata de enfrentar a herança paradoxal de uma personagem que, por definição, exige uma exuberância e um artifício que não podem ser desligados de um perverso estatuto psicológico.

Assim se relança uma tradição de que a Disney detém a propriedade artística e mitológica. De facto, Walt Disney adquiriu os direitos de adaptação do livro em 1957, um ano após a primeira edição - lançado em 1961, o filme Os 101 Dálmatas seria uma das derradeiras longas-metragens de animação cuja gestação ele ainda aprovou (faleceu em 1966, contava 65 anos).

Estamos perante um exemplo paradoxal da evolução dos desenhos animados no estúdio do Rato Mickey. Por um lado, o próprio Disney já não acompanhava todos os detalhes de produção de cada filme; por outro lado, a longa-metragem anterior, A Bela Adormecida (1959), arriscando em alguma inovação técnica e gráfica, tinha sido um aparatoso desastre comercial, a ponto de se ter discutido o encerramento do departamento de animação do estúdio. Regressando a modelos de produção mais tradicionais, e menos dispendiosos, Os 101 Dálmatas revelar-se-ia decisivo na superação da crise, surgindo em oitavo lugar no Top 10 americano dos filmes mais rentáveis de 1961 (liderado por West Side Story).

A voz de Cruella pertencia a Betty Lou Gerson (1914-1999), atriz com uma filmografia essencialmente televisiva. Em cinema, teve, por exemplo, um pequeno papel no clássico de terror A Mosca (1959), de Kurt Neumann (recriado em 1986 por David Cronenberg), mas a sua imagem de marca está ligada às produções Disney - o seu trabalho com os estúdios começou, em 1950, como narradora de A Gata Borralheira.

Os 101 Dálmatas tem sido mais do que um "tema" ciclicamente recuperado: entre a animação original e o novo filme com Emma Stone, pode dizer-se que se consolidou uma verdadeira franchise, com ramificações nos mais diversos domínios do entertainment, incluindo a televisão e os videojogos.

1996 foi a decisiva data de viragem, com o lançamento de uma nova versão, agora com atores de carne e osso. Dirigido por Stephen Herek, 101 Dálmatas voltava a contar a história da família que vê os seus queridos dálmatas ameaçados pela implacável Cruella de Vil, personagem desta vez claramente promovida a centro dramático. Com um trunfo que todos reconheceram como decisivo numa produção, afinal, de escassa imaginação criativa: Glenn Close compunha uma Cruella exuberante e barroca, combinando a metódica maldade com uma elegância ostensiva.

Das inevitáveis diferenças entre o original de 1961 e a versão de 1996, vale a pena citar um pormenor com algo de sintomático. Assim, no primeiro filme, o pai da família Radcliffe, Roger (com a voz de Rod Taylor, na altura muito popular graças à série televisiva Hong Kong), é um músico que sonha ter uma carreira como compositor de canções; 35 anos mais tarde, Roger (Jeff Daniels) trabalha como designer de jogos de video...

Dir-se-ia que o ambiente em que as personagens se movem reflete as transformações que a grande máquina Disney estava a atravessar, na sequência da gestão do departamento de animação por Jeffrey Katzenberg (de onde, em qualquer caso, saiu em 1994). Foi, de facto, durante o "reinado" de Katzenberg que o estúdio relançou os desenhos animados, através de um ciclo de sucessos que começou com A Pequena Sereia (1989), desembocando nesse fenómeno global que foi O Rei Leão (1994): a tradição da animação e das fábulas, embora mantendo-se, ia sendo refeita e, num certo sentido, expandida através da integração de novos instrumentos técnicos. Estava aberto o caminho para um novo ciclo de produção: os remakes de clássicos de desenhos animados, agora com intérpretes humanos.

Um ano depois do filme, a franchise expandiu-se para a televisão, com 101 Dalmations: The Series (1997-1998), surgindo também três videojogos inspirados no tema. Glenn Close regressou em 2000, com a sequela Os 102 Dálmatas, ou seja, Cruella a contas com mais um bebé dálmata: o filme, realizado por Kevin Lima, propunha variações tão trapalhonas quanto desinteressantes, incluindo Gérard Depardieu a interpretar um aliado de Cruella nos seus propósitos criminosos...

Uma coisa é certa: o filme de 1996 ficou como um dos primeiros sinais de uma diretriz de produção - os remakes com atores - consolidada ao longo das últimas décadas. O caso de O Rei Leão será o mais óbvio, mesmo se acaba por ser também o mais atípico. Assim, o remake de O Rei Leão (2019), dirigido por Jon Favreau, possui a sedução visual dos "animais verdadeiros", mas não deixa de ser o resultado de um complexo tratamento das figuras que envolve a combinação da técnica tradicional de motion capture (a partir de filmagens de seres reais) com os mais vanguardistas recursos digitais.

A simples evolução das técnicas de filmagem e encenação, muitas vezes resumidas na expressão algo redutora de "efeitos especiais", não parece suficiente para explicar toda esta vaga de remakes - ou como diz a publicidade dos estúdios: animações agora em "ação real". Mesmo sem menosprezarmos a multiplicidade dos "efeitos", por vezes impressionantes, gerados pelas novas tecnologias, convém não secundarizar o fator mais básico. A saber: o potencial dramático das personagens clássicas.

Cruella de Vil é, obviamente, um caso modelar desse potencial, como é, por exemplo, a bruxa de A Bela Adormecida, recuperada, agora como personagem central, em dois títulos protagonizados por Angelina Jolie: Maléfica (2014) e Maléfica: Mestre do Mal (2019). Sem esquecer as maravilhosas variações, também com atores, assinadas por esse mestre do artifício espetacular que é Tim Burton: Alice no País das Maravilhas (2010) e Dumbo (2019). Ou ainda a versão de A Bela e o Monstro (2017), realizada por Bill Condon, que serviu também para um salutar resgate artístico: no papel de "Bela", Emma Watson libertou-se, finalmente, da herança da sua Hermione, eternamente cativa do mundo de Harry Potter.

Numa indústria tão afetada - e artisticamente limitada - pela dominação dos modelos de espetáculo ligados aos super-heróis (muitos deles também gerados com chancela Disney), as personagens "roubadas" aos desenhos animados conseguem, pelo menos, oferecer-nos aquilo que Homem de Ferro & Cª deixaram de possuir: alguma emoção humana. Mesmo quando, para mal dos nossos pecados, Cruella se dá ao luxo de ser apenas uma caricatura feminina, dispensando o feminismo: "Eu vivo para as peles! Eu adoro peles! Afinal de contas, neste mundo miserável há alguma mulher que não adore peles?"

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