Crónica de Vilar de Mouros aos 18: na maioridade, é fixe não estar fixe

Dizem os inveterados que esta sexta à noite é que é - Sisters of Mercy, Skunk Anasie, Offspring... Um festival, uma vila, bairros e pessoas a adormecer e acordar demónios. Uma crónica do que se vive em Vilar de Mouros por estes dias.

Para chegar à maioridade, o Festival Vilar de Mouros levou 54 anos - há bastante chieira (regionalismo para orgulho, que no dicionário é "bazófia" e "vaidade") no vestir de t-shirts que passam pelos 20 mil metros quadrados do recinto com a cronologia das 18 edições (inaugurada nos anos 1960). Ser adulto não é fixe em Vilar de Mouros, mas se algo penetra mais fundo do que os implacáveis exércitos de mosquitos é a ideologia. "It"s okay not to be okay" ("Kakistocracy"), diz um refrão dos The Therapy?, convenientemente irlandeses e anti-Trump e anti-Boris.

Os vampiros "Vêm em bandos com pés de veludo / Chupar o sangue fresco da manada", rebelou-se Zeca Afonso na música homónima (1963), ele que seria uma das vozes do dia inaugural e ainda muito sujo de Vilar de Mouros 1965 (tal como a banda filarmónica da GNR, por outro lado). Eles comem tudo e não deixam nada. Eles eram ele (Salazar) e os seus pupilos. Eles, agora, são abstencionistas quotidianos e idealistas eufóricos (os animais, igualdade de género, igualdade de oportunidades, ecológicos filiados), amantes fogosos e pais extremosos - ou exagerados e de extremos.

Eles são o grosso, eles estão grossos (a cerveja é democrática na vila, 1€ no Café Central, mais barata no minimercado "tão anos oitenta"; dentro da sala de concertos, é uma prestação da casa (1€ pelo copo, 2€ por cada dose - nenhum humano sobrevive com uma, há o pó, a desidratação de corpos-manifesto, há "saúde", vai acima, vai abaixo). É preciso compreender que foi feito um grande investimento pela organização para requalificar as infraestruturas. Cabem mais mil tendas, há mais seis mil metros quadrados de campismo, nasceu um novo palco (e outro mega patrocinador da lista "rendas excessivas do Estado"). Mais módulos para as abluções e libertação da bexiga e dos intestinos. Embora a tribo esteja no campo, e não há constrangimento eterno que derrote a sensação de estar no campo em ligação com a Natureza. E isto quer dizer que a vergonha vence o embaraço. As instalações sanitárias em concentrações rurais não existem desde sempre; as necessidades fisiológicas, sim.

Eis uma manada a seguir as suas bandas de culto, com as letras das canções na ponta da língua mais ou menos entorpecida, com os seus demónios postos a dormir à marretada de viagens de alienação psicotrópica, passivos na participação da construção/destruição de uma civilização, indo a banhos, mas não a votos, ou fazendo votos de compromissos que não têm a mínima intenção de cumprir. Ou tempo, porque a vida instantânea ou imediata é uma canseira que só passando por elas. Convém desdramatizar: há demasiadas letras pequenas nos contratos, desgraçados problemas de visão, e depois de racharem cabeças com as suas cláusulas ao viverem-nas no dia-a-dia, entre empregos para todos, e sobretudo para alguns, conflitos de gerações, guerras de sobrevivência com incontáveis baixas psicológicas, psiquiátricas, cinzas às cinzas, só a revolução (dos costumes) é caminho. Se em Portugal se morre a crédito (referência Morte a crédito de Louis-Ferdinand Céline, inventário das misérias humanas), muito se deve à capacidade de síntese das empresas, que reduzem os cartapácios de paternalismo, sanções e castigos a um rolo de papel higiénico. "Eu tenho direito à liberdade de escolha, não tenho de, nem devo, submeter-me às imposições ideológicas".

Talvez seja isto que, numa análise abusiva, corta o culto sónico a meio do "Fire Woman" dos The Cult e os seus "obrigado" e "obrigada" (na voz do vocalista Ian Astbury, mas já estamos a falar de hard rock - género musical). Lá se foi 10% do salário (do médio, ainda mais para uma grande trupe) no passe para os três dias (70€), mais as variáveis imponderáveis: o combustível (álcool que quase se traduz em "cerveja"), os anjos psicotrópicos para uma pequena grande vitória contra as punições da vida, esses demónios.

E siga. Markus mudou de vida. É um alemão de 41 anos que fotografa festivais de música para o seu blog (num determinado dia, este diário jornalístico e introspetivo desvelará a fotografia geral desta jornada pessoal, solitária e intransmissível). Foi o primeiro a chegar, domingo, retratado o Paredes de Coura. Não havia instalações de apoio sanitário ou às funcões vitais (fonte de energia para os smartphones, as power bank e todo o tipo de geringonças), não havia infra-estruturas tampouco, ou sinal de nenhuma destas comodidades urbanas na chieira do Alto Minho (como ainda há dias pontuava em Viana do Castelo uma das exigentes defensoras dos códigos obrigatórios a que devem obedecer os trajes tradicionais que combatem e celebram a agonia: as Festas da Nossa Senhora da Agonia são outro festival e de outras civilizações, embora festas de qualquer modo).

Apresentado Markus na medida em que lhe é conveniente para a sua estratégia diarística, falta contexto. Markus está em Vilar de Mouros a disparar a câmara e sabe que de seguida irá documentar mais dois festivais. O que Markus não sabia era que ia ter uma conversa fracturante num festival - porque os festivais, na Alemanha, Bélgica ou Inglaterra, são todos da mesma equipa; é ok não estar ok. A alienação da consciência, os cenários sem gentrificação tendem a descontrair a malta. Afinal, são só três dias, ou cinco, ou seis. A vida seguirá dentro de momentos, com os demónios de volta á sua função vigilante de nos manter despertos para as nossas minas e armadilhas pessoais (manipulação de sentimentos, deformação de realidades, fazer voluntariado em instituições de saúde mental - o que for necessário para sobreviver no "inferno somos nós" inspirado com respeito pelo espírito do "inferno são os outros" do filósofo e autor Jean-Paul Sartre.

Presunto de Chaves, bola de atum, amendoins, cerveja, vinho - o chão de gravilha para os churrascos fica na zona das tendas, a cerca de 750 metros. E como se pode concluir que a vida é a melhor das impossibilidades (foi dito "viver é impossível") enquanto se pensa na melhor abordagem cronológica para captar a essência dos seis concertos diários em dois palcos que quase se sobrepõe (logo, ADN festival: são sete ou oito horas praticamente consecutivas de música a partir das 19h30)? Por contágio de identificação. No caso, pessoas que passaram ou ainda passam por severos conflitos paternais. Mas, enfim, há o amanhã que grita e se silencia, há concertos previamente pagos (alguns a crédito). Nem tanto à relativização, nem tanto à culpa. Em teoria, funciona.

Hoje à noite é que é

Entre duches de água fria ao ar livre, ou nas caixas abrigadas (nestas, às 7:30, o banho é quente como um antigo dia de Verão no Minho interior, mesmo a meia dúzia de quilómetros do mar - no caso, o Atlântico que Caminha acolhe), entre concertos das 19:30 às 3:00 e (outra novidade) discoteca ao ar livre depois disso, entre a música com que cada grupo de festivaleiros decide onde e a que horas brindar os camaradas de viagem, a vida continua.

Depois das experiências de 1965 e 1968 (consta que irritou a PIDE, oh-oh), do 1971 que consta da certidão de nascimento mais canónica do Vilar de Mouros, esse festival bissexto (18 edições, ou 16 para os mais canónicos que só contam a partir de 1971, em 54 anos...) e histórico (considerado o mais antigo da Península Ibérica), a festa continua. Este sábado que entrará delirante na madrugada de domingo é o dia de "hoje é que é", defende uma franja de convertidos. Clan of Xymox (19:30), The House of Love (20:35), Nitzer Ebb (21:40), The Sisters of Mercy (22:50), Skunk Anansie (00:00) e The Offspring (01:45).

Traga repelente, gelo e anjos. Os demónios têm de ser silenciados, custe o que custar - e custa menos num festival, onde se está livremente preso a um retrocesso civilizacional evidente e voluntário (o campismo não é isto, daa), em que até a nossa cela individual está de portas abertas. Às conversas tontas, sim, às conversas anti-climax, que são afinal conhecimento do outro, às bebedeiras, aos comportamentos monstruosos. Na primeira noite, véspera do arranque do festival, uma menina de uns 10 anos chorava inconsolavelmente porque o pai a tinha mal-tratado verbalmente, sendo que era o álcool a falar, vá lá, filha, amanhã de manhã já passou, é o festival - uma hora depois, e num esforço transparente, apesar das lonas que tratam de assegurar a intimidade, o pai baixava o tom em contrição não muito voluntário e a menina soluçava, soluçava, soluçava; ou o casal (heterossexual) que se costuma zangar à terceira noite que decidiu arrumar a questão também de véspera, e é ela que dorme ao relento.

Há quem leve esta vida de marinheiro (jurisdição da Polícia Marítima nos parques, que ficam do lado da vila; da GNR do outro lado, onde estão as salas sem tecto dos concertos), mas não falta quem opta por vir a uma só noite, concentrando-se numa banda, ou na falta de dinheiro a crédito, ou quem venha todas as noites, mas regresse a casa. Como se sabe à saciedade, é todo um potencial de receitas para o Governo, mas também de alguma despesa. Afinal, conduzir com uma taxa superior a 1,2 gramas/litro de sangue é crime. E os crimes tendem a castigar quem os comete e quem não os comete. Cenas processuais e custos de Justiça. Mas, ok, se é fixe não estar fixe, por que não desafiar as autoridades? Já para não falar da segurança e a vida humana. Mas essa parece não ter um grande preço nos tempos que correm. A não ser que nos seja familiar. A morte e o morto.

EDP Vilar de Mouros

Vilar de Mouros

Até sábado

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