Cristóbal Balenciaga. Arte e segredo na alta-costura
Que Daniel Day-Lewis tenha recriado pelas suas próprias mãos um vestido Balenciaga, na fase de ensaio para encarnar o protagonista de Linha Fantasma (2017), diz muito sobre a influência desse mestre da alta-costura, não só na génese criativa do filme de Paul Thomas Anderson mas em todo o mundo da moda. Quem como ele (e já agora, como a tal personagem do estilista Reynolds Woodcock, de Day-Lewis) se debruçou sobre os tecidos com uma devoção religiosa pelos mais ínfimos detalhes do modelo? É essa postura de cirurgião, particularmente obcecado por mangas imperfeitas, que se testemunha agora na série Cristóbal Balenciaga, uma produção espanhola Disney+ em inevitável diálogo com a elegância do referido Linha Fantasma, desde logo através da banda sonora de Alberto Iglesias (colaborador regular de Almodóvar), que em certos andamentos namorisca a sonoridade criada por Jonny Greenwood para aquele filme.
Ao longo de seis episódios, tira-se então o véu ao secretismo que sempre rodeou a figura de Cristóbal Balenciaga (1895-1972), o artesão “aristocrata” escondido atrás da cortina nos desfiles que apresentavam as suas coleções, com terror da imprensa – durante toda a vida deu um par de entrevistas, e a única vez que se deixou fotografar foi para a campanha do seu perfume Le Dix, num contexto de rivalidade cordata com Christian Dior. Uma dessas duas entrevistas que conseguiram furar o seu regime eremita serve aqui de enquadramento narrativo: em 1971, no funeral de Coco Chanel, a jornalista britânica Prudence Glynn conseguiu aproximar-se do mito e deixá-lo a ponderar a possibilidade de uma conversa sobre a sua carreira. Aconteceu pouco depois, mas terá sido bastante mais curta do que a série sugere. Seja como for, o jornal The Times publicou-a orgulhosamente como exclusivo mundial.
De 1937, ano em que Cristóbal chegou a Paris, fugido da Guerra Civil Espanhola, até ao encerramento das suas lojas e ateliers, em 1968, este é um retrato do homem reconhecido pelos seus pares como o “verdadeiro costureiro” (era Chanel quem dizia que todos os outros, incluindo ela própria, eram apenas designers de moda). E nessa evidência reside um dos aspetos mais interessantes da série, que também assinala as origens humildes de Balenciaga, nascido em Getaria (País Basco), filho de pai pescador e mãe costureira, com quem aprendeu o amor pelos tecidos. Há aqui um foco no trabalho, na maneira como todas as preocupações do criador giravam em torno da conceção minuciosa dos vestidos e casacos, que não deixa dúvidas sobre a sua veneração pela alta-costura enquanto arte. Uma arte que deveria lutar sempre pela sobrevivência, mesmo em cenários como a ocupação nazi, um dos capítulos mais incompreendidos do percurso de Balenciaga, que manteve abertas as portas da sua maison parisiense, ainda que consumido pelo medo de ser identificado como homossexual. A verdade é que partilhava a casa com o seu sócio, e amante em segredo, Wladzio d'Attanville, e mais tarde repetiu esse nível de proximidade com o seu braço direito Ramón Esparza.
Esta reservadíssima vida amorosa é outro dos pontos que contribuem para a tensão visível no rosto de Alberto San Juan, o intérprete de Balenciaga, que capta as nuances de um homem conservador no “modo de fazer” mas visionário na definição do estilo. Alguém que tinha um profundo respeito pelo corpo de cada cliente, e sabia adaptar a arquitetura do tecido de forma a esconder as imperfeições e embelezar a silhueta – um dos casos desse gesto artístico foi o vestido de noiva que desenhou para a futura rainha Fabíola da Bélgica, em 1960.
Replicar Balenciaga
Criada por Lourdes Iglesias, e pelo trio de realizadores Aitor Arregi, Jon Garaño e Jose Mari Goenaga, esta série é o tipo de produção que exigia requinte e rigor visual, a começar pelos modelos que se veem nos desfiles da Maison Balenciaga. Daí que o trabalho dos figurinistas tenha sido particularmente desafiador, como contou Bina Daigeler ao El País, revelando o nervosismo que sentiu perante a missão de replicar modelos de Balenciaga: “Estamos a falar de alta-costura old-fashioned, da boa, onde tudo é feito à mão. Foi um desafio gigantesco mas apelativo, porque comecei a minha carreira como costureira.” Diz a mulher que antes vestiu Cate Blanchett em Mrs. America e Tár, além de ter no seu currículo colaborações com Pedro Almodóvar e Jim Jarmusch.
Acima de tudo, revisitar a arte de Balenciaga implicava não descurar a qualidade do material têxtil. Era preciso garantir o toque autêntico dos tecidos da época. “Cristóbal usou os tecidos de maneira arquitetónica, para estilizar a figura feminina. O seu trabalho não era o de um designer, mas sim o de um arquiteto”, sublinha ainda Daigeler, apontando para o grau de exigência do costureiro que criou o seu próprio tecido, o gazar (invenção também retratada num dos episódios).
Ou seja: na própria conceção de Cristóbal Balenciaga, a série, houve um cuidado/reverência semelhante ao que o estilista tinha em relação aos seus modelos, nunca cedendo um milímetro nas ideias artesanais... Bem, talvez se possa encontrar uma exceção nos diálogos com o eterno confidente Wladzio d'Attanville, que sabia estimular a sua lógica de inovação. Sendo que uma outra inovação comercial, o prêt-à-porter, representou um dos maiores desgostos de Balenciaga face aos tempos modernos da década de 60. Um mundo em que a alta-costura já não passava pelo labor personalizado do costureiro, e onde o poliéster começava a entrar na composição dos tecidos, era um mundo contra os princípios desta Greta Garbo da moda. E o melhor é nem pensar como reagiria se visse hoje o seu nome estampado em ténis...