Cristian Mungiu: "Produzimos demasiados filmes para tão pouco público"
É o mais consagrado dos cineastas romenos da sua geração. Cristian Mungiu comanda a corrente do realismo romeno, iniciado quando venceu a Palma de Ouro de Cannes em 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. O ano passado voltou a competir em Cannes com R.M.N., um intrigante puzzle moral sobre um mal-estar social numa remota vila da Transilvânia, onde a sua população multiétnica parece anunciar um barril de pólvora.
Microfone aberto a um dos grandes criadores de cinema dos nossos dias, alguém que se mostra extremamente preocupado com o excesso de filmes produzidos e a debanda do público que, antes, frequentava as salas de cinema de autor.
Este seu filme passa-se perto da fronteira da Roménia com a Hungria. Que tipo de contexto o público português deve ter da situação social aí vivida?
Era bom que os portugueses percebessem que este é um filme que não fala apenas da Roménia e da sua situação na Transilvânia. Escolhi relatar uma história que se passa nessa região porque é uma parte multiétnica do nosso país. Porém, penso que é um filme que fala sobre todos nós, neste mundo, e como nos relacionamos com a globalização e com aqueles que não conhecemos bem. Funciona como um retrato sobre o nosso subconsciente, que alimenta a nossa animalidade, os nossos medos, o nosso lado negro, a nossa dualidade, a nossa tolerância perante a migração - o que se passa ali pode passar-se em qualquer outro sítio... Senti isso de pessoas da China, do Brasil ou da Eslováquia que viram o filme. Mas queria sublinhar que para além dos temas importantes, R.M.N. é um filme para o público. O que isto quer dizer? Que é também um filme com ritmo, um thriller. É meu desejo que o público partilhe as sensações do protagonista.
Senti que disseca os prazeres do puro mistério.
É uma história de mistério! E fala da ansiedade que sentimos deste mundo face ao futuro incerto. Simultaneamente, abordo muita coisa abstrata, tentei encontrar um equivalente visual para isso, daí toda a tensão difusa que o filme convoca...
Como é que vê esta situação dramática da queda dos números de bilheteira nas salas de cinema de autor?
Não estou nada otimista e esta é uma situação global! Depois da covid as pessoas descobriram o VOD [video on demand] mais do que nunca. Torna-se muito difícil para os filmes mais reflexivos voltarem a encontrar os espetadores. Para ser franco, antes já era difícil - tenho a teoria de que os jovens estão habituados a um outro ritmo de vida e de cinema. Tem a ver com concentração... Habituam-se a formatos infantis, muito velozes, e a estarem sempre a ver mensagens no telefone. Para eles, duas horas numa sala de cinema é um pouco desafiante... Por outro lado, a pirataria tornou mais fácil aceder aos filmes em boas condições. Temos todos de perceber isso e adaptarmo-nos para uma mudança! Não será o mundo que se vai adaptar às nossas necessidades. Mas o desafio é continuar a dar diversidade, não ficarmos apenas reféns do entretenimento... Temos sempre de tentar atingir o intelecto do público e contar histórias do mundo em que vivemos, bem como dar a quem nos vê a necessidade de construir uma opinião.
Citaçãocitacao"Penso que é um filme que fala sobre todos nós, neste mundo, e como nos relacionamos com a globalização e com aqueles que não conhecemos bem".
Mas, ao mesmo tempo, é importante enaltecer o papel dos festivais de cinema. Serão eles o último bastião do cinema não-comprometido? Cada vez mais os festivais atraem um maior número de público jovem...
As pessoas vão aos festivais porque sentem que aquilo é um evento. Os festivais não ajudam o negócio da exibição cinematográfica. Para conseguir encontrar o interesse do público romeno tive de organizar um tour, numa caravana, com o filme por todo o país. Todos os dias mostrava o filme em diversas cidades, seguido de debates, e isso ajudou muito, sobretudo neste caso. O R.M.N. não nos oferece quaisquer conclusões, não julga nada, mas ajuda as pessoas a formarem uma opinião sobre tomadas incorretas de posição política. Este modelo de lançar um filme pode mudar a forma como financiamos e distribuímos o cinema. É preciso encontrar soluções... Produzimos demasiados filmes para tão pouco público. Está na altura de nos focarmos em fazer, sobretudo, melhores filmes! Filmes que saibam encontrar o seu público. O filme que não encontrou público foi produzido para o boneco.
De onde é que deve vir o apoio à produção? A Comunidade Europeia devia apoiar mais?
A Comunidade Europeia já apoia o suficiente. Num mundo ideal, gostava que o modelo de apoio fosse um incentivo para os filmes que dão lucro. Dessa forma, evitávamos o envolvimento ideológico, mas é claro que não vivemos num mundo ideal. Além do mais, temos a tentação de olhar para a Europa como monolítico comum com os mesmos valores, só que isso não resulta para o cinema, que tem de ser antes de tudo nacional. Os públicos portugueses não se iriam identificar com um ator estónio e é preciso assumir essas diferenças. Nesta altura, o mais importante é encorajar a Educação, que até pode passar por educar as pessoas a ver filmes com legendas. Há um projeto da Comunidade Europeia, de criar um circuito VOD de filmes europeus, que tem de continuar a ser incentivado, sobretudo porque, por estes dias, os filmes não ficam muito tempo em exibição. Volto a sublinhar: há filmes a mais e não há ninguém que tenha tempo para os ver.
Estamos naquela fase que nem os cinéfilos já conseguem acompanhar a totalidade das estreias.
Pois, exato: nem os cinéfilos! Os cinemas agora têm cinco filmes por semana e as pessoas ficam confusas. Temos de lutar por uma mudança - é necessário que um filme possa ficar mais tempo nas salas. As pessoas estão sempre a perguntar em qual plataforma podem descobrir os meus filmes. Eu digo sempre que tentem primeiro descobrir os filmes no cinema, é como se para elas a janela do lançamento em sala já nem contasse. Mesmo na Roménia dizem-me que querem ver este filme e nem perceberam que estreou nas salas. Com o R.M.N. consegui cerca de 35 mil bilhetes vendidos, não é muito. Mas a maioria dos filmes romenos faz pouco mais de 1000 espetadores...
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