Craig, Daniel Craig, o adeus à saga 007
A estreia em sala do 25.º filme do mais famoso agente secreto ao serviço de Sua Majestade foi um parto difícil, mas está quase aí. Inicialmente previsto para ser apresentado ao mundo em abril de 2020, o derradeiro título de Daniel Craig na saga, que esteve à mercê da evolução da pandemia, conseguiu assentar uma data feliz (30 de setembro), à beira do regresso a uma certa normalidade. Na última semana, com a contagem decrescente para o "grande dia", houve mesmo uma atenção especial a Craig e ao que ele pensa sobre o badalado tema dos moldes futuros da personagem. Em entrevista à Radio Times, o ator britânico defendeu que James Bond não deve ser uma mulher: "Simplesmente devia haver melhores papéis para mulheres e atores de cor. Porque é que uma mulher deveria interpretar James Bond quando devia haver uma personagem tão boa como James Bond, mas escrita para uma mulher?"
A ideia é pertinente e junta-se ao que a atriz Rachel Weisz, esposa de Daniel Craig, já tinha dito em 2018, ao jornal The Telegraph, quando lhe colocaram a mesma pergunta: "Ian Fleming dedicou imenso tempo a escrever esta personagem específica, que é especificamente masculina e se relaciona de uma forma específica com as mulheres. Porque não criar a sua própria história em vez de saltar para os ombros e ser comparada a todos os homens que antecederam no papel? As mulheres são verdadeiramente fascinantes e interessantes, e deviam ter as suas histórias." Uma opinião que a produtora, Barbara Broccoli, também subscreveu numa entrevista à Variety no ano passado: "Bond pode ser de qualquer cor, mas é um homem."
Esta prudência é bem-vinda, sobretudo quando pensamos que, para trás do novo 007: Sem Tempo para Morrer, de Cary Joji Fukunaga, há toda uma narrativa de conceito e perfis masculinos que foram definindo este universo como um fato feito à medida de cada ator. Não é desprovido de sentido lembrar que tudo começou precisamente por aí. Quer dizer, Sean Connery foi escolhido pela maneira como se movia, mas o realizador Terence Young esculpiu-lhe a postura, desde logo pedindo-lhe para dormir com o fato vestido, de modo a habituar-se à indumentária de serviço... e ele sentiu-se confortável.
Daniel Craig (n. 1968), que cresceu a ver os westerns de Sergio Leone e John Ford, mais facilmente acreditava que um dia poderia vir a interpretar cowboys do que o agente secreto mais desejado do planeta. E, porém, aterrou na proposta milionária em 2006, sucedendo a Pierce Brosnan como o sexto ator da saga. Na altura, os mais aficionados da literatura de Fleming não acharam muita piada - alegavam que Craig não correspondia ao padrão dos homens altos que até ali tinham assumido o papel, e pior do que isso, o seu cabelo loiro não batia certo com a descrição da personagem, que nos livros, e até àquele momento nos filmes, teve sempre cabelo escuro.
Independentemente dos olhos azuis e do cabelo loiro, Craig é o ator que tem mais afinidades com a primeira versão cinematográfica de James Bond, ou seja, com o favorito Sean Connery. É algo da ordem do físico: Connery era praticante de culturismo e Craig confessou-se atraído para o papel também pela exigência atlética. O apelo da ação e os peitorais de ambos foram, e são, as provas dessa tendência...
Em todo o caso, 007: Casino Royale (2006), de Martin Campbell, o primeiro filme com a presença de Craig, reescreveu a tradição recente da personagem, por um lado, regressando à letra de Fleming para ir buscar uma certa dureza - que antes Connery conciliara com a ironia - aqui combinada com um semblante taciturno, para além do corte impecável dos fatos. A verdade é que o Bond de Daniel Craig tem uma ponta de tragicidade no rosto, é o homem vulnerável que acaba traído pela mulher que amava (a Vesper Lynd de Eva Green), e não tanto o gentleman que se mete debaixo dos lençóis para sexo ocasional com todas as mulheres que se atravessem no caminho.
O seu reinado termina agora e acumula cinco filmes da saga 007, numa linhagem que, depois de Connery, seguiu com George Lazenby e a sua participação isolada - Ao Serviço de Sua Majestade (1969) -, Roger Moore, no registo mais divertido de todos, que lhe permitiu manter-se no papel até aos 58 anos, Timothy Dalton, com dois filmes no currículo, e Pierce Brosnan, que chegou à marca dos quatro, recuperando os sucessos de bilheteira e passando então o testemunho a Daniel Craig, o ator que rebentou a escala dessa bilheteira com uma carga de sex symbol e um je ne sais quoi roubado ao seu predileto, Connery. Fecha-se um ciclo, comece o próximo.
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