Coppola refaz o apocalipse… e mais além
O novíssimo filme de Francis Ford Coppola, Megalopolis, revelado na secção competitiva de Cannes, será tudo o que se quiser menos um objeto capaz de gerar consensos. Apesar disso (aliás, precisamente por causa disso), venha ou não a ser premiado pelo júri presidido por Greta Gerwig, não será arriscado supor que tem já um lugar garantido na paisagem mitológica do festival: 2024 ficará como o ano de Megalopolis!
E não é caso para menos. As conhecidas atribulações da sua gestação são apenas uma parte do fenómeno agora revelado, desde logo surpreendente pelos números que envolve: rezam as crónicas que, depois de várias décadas sem conseguir concretizar o projeto, Coppola vendeu grande parte do seu império vinícola (por 500 milhões de dólares) e decidiu avançar para Megalopolis com o seu próprio dinheiro (120 milhões).
Tudo se passa na cidade de Nova Iorque, num futuro indeterminado, embora não muito diferente do nosso presente - Manhattan continua a ser Manhattan. Aliás, o rótulo de “ficção científica” que alguma imprensa colou ao filme é, no mínimo, precipitado. A imagem de uma Nova Iorque que tenta reconstruir-se de um desastre apocalíptico está longe de contribuir para uma qualquer visão dita de “antecipação” - Coppola vai mais além e acrescenta a Megalopolis um subtítulo com tanto de infantil como de filosófico: “Uma fábula”.
Em tom de fábula
Será, por isso, redutor vermos Megalopolis como um espelho surreal dos tempos em que existiu um presidente chamado Donald Trump. A chicana política, a agitação nas ruas, até mesmo a sensação de um mundo que só sabe viver através da sua exposição mediática, tudo isso passa pelo filme. Em qualquer caso, estamos muito longe da vulgaridade “informativa” dos nossos dias em que o cinema parece obrigado a ser um caderno de encargos de “temas” bem cotados na retórica dos jornais televisivos.
A fábula emerge como espelho bizarro do mundo em que vivemos (e vemos filmes), abrindo para uma infinidade de possibilidades utópicas. Utopia será mesmo a palavra-chave para descrevermos a personagem de Cesar Catalina (Adam Driver), que, em momento de perversa objetividade, um crítico americano já descreveu como um “avatar” do próprio Coppola: ele é o sonhador que quer reconstruir Nova Iorque em nome da felicidade e da esperança, não por acaso confrontado com o calculismo do mayor Franklin Cicero (Giancarlo Esposito). E se os nomes evocam outros tempos trágicos, eis o que está longe de ser acidental: Nova Iorque é, agora, a Nova Roma.
A classificação de fábula envolve, por isso, um primitivismo narrativo que Coppola assume com desarmante naturalidade, devolvendo ao cinema a possibilidade - e a perturbante liberdade - de ser um arte “naïf”. Nesta perspetiva, podemos ser tentados a olhar para Megalopolis como um descendente direto dos épicos que pontuam toda a história do cinema americano (e, em boa verdade, a própria história dos EUA), desde O Nascimento de Uma Nação (1915), de David W. Griffith, até Apocalypse Now (1979), do próprio Coppola.
Ainda assim, semelhante genealogia não bastará para dar conta da ousadia criativa de Megalopolis: há nele o gosto de desafiar a lógica figurativa e os modelos narrativos das imagens em movimento que nos coloca em ligação direta com o prazer ilusionista de Georges Méliès, o autor de Viagem à Lua (1902).
No coração do cinema
Gosto de dizer que um grande filme está longe de ser aquele que encontra a sanção positiva, porventura entusiástica, do crítico de cinema. Por mim, e para mim, será antes aquele que coloca o crítico perante a dificuldade de dar conta do que nele acontece - como “descrever” Megalopolis?
Será que estamos perante uma reinvenção das normas clássicas da tragédia? Sim, por certo, pensamos em Shakespeare, com quem aprendemos que “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem qualquer significado”. Ao mesmo tempo, tudo isso acontece como se estivéssemos numa sala de projeção da Disneylândia em que as possibilidades de figuração no ecrã, com os mais inesperados envolvimentos sonoros, nos levam a perguntar: afinal, que ritual é este?
A certa altura, há mesmo uma figura que sai dos bastidores (entenda-se: uma personagem física, carnal, como num teatro). Transporta um microfone e, durante um breve e indescritível minuto, dialoga com a imagem de Adam Driver no ecrã. Escusado será dizer que este episódio, certamente preparado para a apresentação de Megalopolis em Cannes, não poderá ser reproduzido em “todas” as projeções que o filme terá ao longo dos anos, mas é bem revelador da desconcertante alegria criativa que distingue o jovem Francis Ford Coppola, 85 anos celebrados no passado dia 7 de abril.
Na sua dimensão mais burlesca (que, neste caso, rima com dantesca) encontramos a personagem da jornalista de televisão, especialista das convulsões do mundo da finança, interpretada pela brilhante Aubrey Plaza, mostrando como o espírito de ostentação atrai a mais estúpida irrisão. Para que conste, a personagem chama-se Wow Platinum - o nome é sempre um destino.
Há mais de 40 anos, depois do impacto de Apocalypse Now, Cop- pola apostou em revolucionar o modo de pensar e fazer filmes com o genial One from the Heart/Do Fundo do Coração (1981), uma espécie de musical refeito para a idade dos telediscos. Megalopolis é um herdeiro dessa experiência, aliás exibindo a marca (resistente entre todas) da sua própria companhia de produção: American Zoetrope. O crítico pode não saber como orientar-se neste labirinto criativo, mas fica uma certeza recheada de comoção: para Coppola, o cinema resiste ao decreto da sua morte.