Imagem do filme A Propósito de Susan Sontag: “Não gosto de agendas partidárias.”
Imagem do filme A Propósito de Susan Sontag: “Não gosto de agendas partidárias.”

Contra a monotonia intelectual

A obra de Susan Sontag continua a ter uma presença significativa no mercado português. Agora surgiu 'Sobre as Mulheres', uma antologia de textos selecionados e organizados pelo seu filho, David Rieff - para revisitarmos ideias e contradições da década de 1970.
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O mínimo que se pode dizer sobre a herança de Susan Sontag (1933-2004) é que, neste mundo parasitado por generalidades mediáticas, importa não a reduzir a uma lógica unívoca, nem mesmo aquela que, eventualmente, poderíamos recobrir com o nome de “feminismo”. A antologia de ensaios Sobre as Mulheres, agora lançada no mercado português (ed. Quetzal, com excelente tradução de Vasco Teles de Menezes), poderá servir de exemplo da sua trajetória plural, até porque há nela tanto de esclarecedor como de desconcertante.

Este é mais um livro póstumo de Sontag, resultante do trabalho de seleção e organização desenvolvido por David Rieff (n. 1952), filho da autora. Lembremos, a propósito, a referência fundamental de Renascer (ed. Quetzal, 2022, tradução de Nuno Guerreiro Josué), coligindo “diários e apontamentos” escritos entre 1947 e 1963, num tom confessional que envolve o reconhecimento do seu lesbianismo, superando um destrutivo “sentimento de culpa”, para desembocar numa verdade cristalina: “Sei o quanto amar é bom, e legítimo”.

O título Sobre as Mulheres poderá sugerir uma evolução “temática”, da dimensão mais íntima para a reflexão sobre questões coletivas. A cronologia dos textos convida-nos a tal descrição: estamos perante seis ensaios e uma entrevista com datas de publicação entre 1972 e 1975, portanto já depois dessa incontornável coletânea que é Contra a Interpretação e Outros Ensaios, cuja primeira edição data de 1966 (surgiu entre nós em 2004, com chancela da Gótica e tradução de José Lima; existe agora em edição de 2022, no catálogo da Quetzal, com tradução de Vasco Teles de Menezes).

Mulheres e homens

De onde provém o caráter desconcertante de Sobre as Mulheres? Dos contrastes que, em alguns momentos, vão pontuando a escrita de Sontag, levando-nos a perguntar o que acontece para que um pensamento tão exigente possa ceder ao esquematismo de certas significações ou rótulos.

Leia-se o texto de abertura, “O duplo padrão do envelhecimento”, argumentando, com sagacidade e justeza, que a passagem dos anos é socialmente (e até moralmente) encarada de modo bem diferente nas mulheres e nos homens, em especial no que se refere ao tratamento do corpo. Será que o reconhecimento de tal “estado de coisas” (estava-se em 1972, convém lembrar) legitima todas as generalizações? Exemplo: “Talvez o facto de, nas sociedades modernas, as mulheres tenderem a defender opiniões políticas mais conservadoras do que os homens tenha origem na sua relação profundamente conservadora com o corpo.” No limite, uma perspetiva deste género pode conduzir a duvidosas formas de combate político. Em “O Terceiro Mundo das mulheres” (1973), Sontag não teme sequer o efeito de boomerang que a caricatura pode gerar: “Com toda a frequência possível, as mulheres devem acender os cigarros aos homens, carregar-lhes as malas e reparar-lhes os pneus furados.”

São pormenores. O certo é que espelham um défice argumentativo que continua a contaminar alguns discursos feministas. A saber: o enunciado das mais legítimas reivindicações femininas em nome de uma descrição (implícita ou explícita) do mundo dos homens como um território fechado e sem movimento, redutível a um coletivo de seres que agem, sentem e pensam a partir do mesmo evangelho de valores estúpidos e repressivos.

Daí o destaque que merece a entrevista que encerra esta coletânea, dada em 1975 à revista Salmagundi (do Skidmore College de Saratoga Springs, Nova Iorque). Trata-se, afinal, de lidar com a textura infinitamente complexa dos comportamentos: “Quero que haja autênticos exércitos de mulheres e de homens a chamar a atenção para a omnipresença de estereótipos sexistas na linguagem, no comportamento e nas imagens da nossa sociedade.” O que envolve também uma resistência tenaz à dissolução da experiência individual na cegueira que, por vezes, alimenta os grupos: “Não gosto de agendas partidárias. Dão azo a monotonia intelectual e a má prosa.”

A ousadia de pensar

Em boa verdade, o núcleo da antologia organizada por David Rieff - o texto “Fascismo fascinante”, publicado na New York Review of Books, a 6 de fevereiro de 1975 - está longe de ser “apenas” sobre as mulheres, ainda que em grande parte centrado numa mulher: Leni Riefenstahl (1902-2003), a cineasta que, ao serviço de Adolf Hitler, realizou O Triunfo da Vontade (1935) e Olimpíadas (1938). A herança de Riefenstahl volta a surgir lado a lado com o embaraço de lidar com a “mensagem” que nela se transporta: como separar (ou não) aquilo que no seu trabalho é cumplicidade com o nazismo dos elementos que decorrem de uma atitude de genuína experimentação formal e narrativa?

Mesmo contornando o labirinto de dificuldades que a pergunta arrasta (que este artigo não pretende inventariar, nem sequer resumir), será inevitável reconhecer que tais dificuldades assombram a prosa fascinante de Sontag. A ponto de nos propor um juízo crítico tocado, de forma porventura inevitável, por uma insólita contradição: “O Triunfo da Vontade e Olimpíadas são indiscutivelmente filmes soberbos (é possível que sejam os dois maiores documentários de sempre), mas não são verdadeiramente importantes na História do cinema enquanto forma de arte.”

Nas suas convulsões - e também na ousadia de pensar que gera tais convulsões - Sobre as Mulheres é mais um objeto precioso para conhecer o universo de Sontag, felizmente bem representado no mercado livreiro português. Acrescente-se também que, na plataforma Filmin, está disponível o excelente documentário A Propósito de Susan Sontag (2014), de Nancy Kates. São pistas para lidar com a obstinação, e também a fragilidade, das ideias fortes. Ou como ela diz: “(…) se queremos que um raciocínio faça sentido num determinado momento, não podemos estar a utilizá-lo o tempo todo.”

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