Apresentado no IndieLisboa de 2024, Contos do Esquecimento, de Dulce Fernandes, chega agora ao circuito das salas. Independentemente das suas qualidades informativas - evocando memórias das práticas esclavagistas dos portugueses no século XV -, é mais um título que se envolve num labirinto comercial de distribuição/exibição que, a meu ver, não tem solução: tentar rentabilizar nas salas de cinema objetos marcados por matrizes narrativas que, por mais que possamos discutir o estado das coisas (audiovisuais), são típicas do espaço televisivo.Que acontece, então? Estamos perante um rol de factos, sem dúvida pertinentes e perturbantes, que começa na escavação de um enorme buraco, em Lagos, aberto para a construção de um parque de estacionamento subterrâneo. Aí foi encontrado um depósito, “muito bem demarcado”, de uma lixeira do século XV onde viriam a ser identificados 158 esqueletos humanos - homens, mulheres e crianças trazidos de África como escravos.Nas dinâmicas ideológicas que nos definem como nação, estes são dados que nos fazem pensar no perverso ziguezague mediático em que, agora, estamos envolvidos. Assim, depois da celebração dos portugueses como heróis que deram “novos mundos ao mundo”, surgiu uma visão masoquista (televisivamente exacerbada) que nos confronta e culpabiliza com os fantasmas muito reais dos tempos coloniais - salvo melhor opinião, creio que o admirável discurso de Lídia Jorge no dia 10 de junho procurou, justamente, lidar com a complexidade política e afectiva de tudo isso.Escusado será dizer que não se pode pedir a um filme, seja ele qual for, que funcione como “remédio” para lidar com tal complexidade (muito menos a um texto como este). Acontece que Contos do Esquecimento se organiza como uma narrativa que aplica uma matriz corrente cujo valor informativo está longe de definir, por si só, uma visão especificamente cinematográfica: um texto “jornalístico” é lido em off, em tom de rotina radiofónica, como um rol de informações que as imagens irão “ilustrar” - a informação passa, embora tudo aconteça à maneira de um “especial” integrado num noticiário televisivo.Sublinhemos, por isso, ainda que através da mesma pertinência histórica, a diferença formal que encontramos na curta-metragem Time to Change, de Pocas Pascoal, que será exibida como complemento de Contos do Esquecimento. Algumas memórias fotográficas são vistas e revistas (montadas e remontadas) como outros tantos sinais dos dispositivos do poder colonial. Dito de outro modo: o cinema apresenta-se como linguagem específica que, de uma maneira ou de outra, nos faz olhar de modo original para os testemunhos (neste caso, as imagens) que recebemos como herança.
Apresentado no IndieLisboa de 2024, Contos do Esquecimento, de Dulce Fernandes, chega agora ao circuito das salas. Independentemente das suas qualidades informativas - evocando memórias das práticas esclavagistas dos portugueses no século XV -, é mais um título que se envolve num labirinto comercial de distribuição/exibição que, a meu ver, não tem solução: tentar rentabilizar nas salas de cinema objetos marcados por matrizes narrativas que, por mais que possamos discutir o estado das coisas (audiovisuais), são típicas do espaço televisivo.Que acontece, então? Estamos perante um rol de factos, sem dúvida pertinentes e perturbantes, que começa na escavação de um enorme buraco, em Lagos, aberto para a construção de um parque de estacionamento subterrâneo. Aí foi encontrado um depósito, “muito bem demarcado”, de uma lixeira do século XV onde viriam a ser identificados 158 esqueletos humanos - homens, mulheres e crianças trazidos de África como escravos.Nas dinâmicas ideológicas que nos definem como nação, estes são dados que nos fazem pensar no perverso ziguezague mediático em que, agora, estamos envolvidos. Assim, depois da celebração dos portugueses como heróis que deram “novos mundos ao mundo”, surgiu uma visão masoquista (televisivamente exacerbada) que nos confronta e culpabiliza com os fantasmas muito reais dos tempos coloniais - salvo melhor opinião, creio que o admirável discurso de Lídia Jorge no dia 10 de junho procurou, justamente, lidar com a complexidade política e afectiva de tudo isso.Escusado será dizer que não se pode pedir a um filme, seja ele qual for, que funcione como “remédio” para lidar com tal complexidade (muito menos a um texto como este). Acontece que Contos do Esquecimento se organiza como uma narrativa que aplica uma matriz corrente cujo valor informativo está longe de definir, por si só, uma visão especificamente cinematográfica: um texto “jornalístico” é lido em off, em tom de rotina radiofónica, como um rol de informações que as imagens irão “ilustrar” - a informação passa, embora tudo aconteça à maneira de um “especial” integrado num noticiário televisivo.Sublinhemos, por isso, ainda que através da mesma pertinência histórica, a diferença formal que encontramos na curta-metragem Time to Change, de Pocas Pascoal, que será exibida como complemento de Contos do Esquecimento. Algumas memórias fotográficas são vistas e revistas (montadas e remontadas) como outros tantos sinais dos dispositivos do poder colonial. Dito de outro modo: o cinema apresenta-se como linguagem específica que, de uma maneira ou de outra, nos faz olhar de modo original para os testemunhos (neste caso, as imagens) que recebemos como herança.