"Continuamos a ver que mulheres a partir dos 40 anos deixam de aparecer nas televisões, nos media mainstream, nos grandes concertos"
Canções com mensagens intimistas e pessoais para partilhar. É esta a base do novo disco de Ana Bacalhau, o segundo depois de Nome Próprio (2017). O novo álbum foi feito - e refeito - em plena pandemia. Um disco com alinhamento pensado para mostrar a evolução cronológica das canções durante o confinamento com todos os sentimentos que vieram à flor da pele da intérprete.
No disco, e na apresentação do mesmo, fala numa redenção pessoal depois da queda. Que queda e que redenção foram essas?
Primeiro tem que ver com uma questão pessoal. E atribuo-o, sobretudo, a duas coisas. Antes da pandemia foi ver-me como artista a solo. Apesar de já ter gravado um disco a solo, na minha cabeça era um membro dos Deolinda que depois ia dando uns concertos a solo. Agora, para este segundo trabalho, tive de aprender rapidamente a ser artista a solo, foi quase um curso intensivo, e fiquei um pouco aflita nos primeiros tempos, ou seja, existiu essa destruição e reconstrução. Depois, o segundo solavanco foi a pandemia. Comecei a fazer o disco em janeiro de 2020 e depois parei quando começou a pandemia. Quando voltei a pegar no disco, em junho, percebi que iria ser um disco diferente. Mas lá está, eu sou uma performer, preciso do palco e resolvo-me muito no palco, ficar sem isso e sem esse elo de ligação com as pessoas causou-me bastante sofrimento, como uma segunda queda.
Em miúda, sempre quis ser cantora?
Não. Eu queria ser professora de Inglês. E na verdade estudei para o ser e fui para a Faculdade de Letras. Poderia ser professora de Inglês se quisesse, tenho as habilitações. Mas depois na adolescência a música veio ter comigo e fiquei agarrada.
Disse que este trabalho foi escrito durante a pandemia e os confinamentos. Como é que isso a afetou? Entrou em pânico, ficou triste, preocupada? Como foi passar por esse tempo?
Em pânico não fiquei, mas fiquei alarmada e tentei informar-me com as melhores fontes possíveis e, com algum bom senso, tentar entender o que se passava. Mas fiquei descoroçoada quando percebi que não seriam poucas semanas para achatar a curva e os concertos começaram a ser cancelados, aí sim fiquei muito desanimada e percebi que não ia ser um processo nada fácil. A única coisa que tinha para me agarrar na verdade era este disco que estava para ser feito. Na altura um familiar apanhou covid logo nas primeiras semanas e percebi o que era a doença e que não iria ser fácil. Por isso, no início estava a sobreviver, mas em abril já estava a resolver-me [risos] e a sentir as cócegas para fazer músicas. Depois, em junho voltei ao disco, percebi que os três temas que já tinha gravado eram muito cheios, com muitas texturas, com muito dinâmica em instrumentação, percebi que se estavam a despir progressivamente, porque passei por tanta coisa e fui tirando lastro para ir sobrevivendo. E daí quando fomos para estúdio o som ficou mais intimista e o disco passou a ter uma lógica cronológica, é uma viagem emocional e sonora.
O que andou a ouvir nessa altura?
No primeiro mês nem ouvi música. Ia vendo umas séries para limpar a cabeça quando a minha filha estava a dormir. Também não se passou muita coisa na música nessa altura, mas andei a ouvir uma banda chamada Whitney que tem um álbum - Light upon a Lake - com um som muito vintage e muito anos 60. Acalmaram-me um pouco, de resto fui buscar as bases, como a Nina Simone, etc.
Citaçãocitacao"Planeamos muito, mas depois a vida tem outros planos e a única forma de sobreviver é criar, na cabeça e depois materializar, para ir mudando o mundo nem que seja à nossa escala."
Há poucos meses num questionário de Proust para o Diário de Notícias disse que um dos seus principais defeitos é o histrionismo. Como é que lida com isso no dia-a-dia? É o palco que a ajuda?
Sim, o palco é o local onde posso ser histriónica a meu favor. Sinto-me livre, não tenho autocontrolo, nem quero e nem estou a autoavaliar-me. Ali não tenho esse travão e adoro. Na minha vida do dia-a-dia, quando estou nervosa ou insegura tendo a dar gargalhadas muito altas ou a mexer-me muito para que as pessoas não me olhem muito. Isto vem da altura quando sofri bullying em miúda na escola e criei esta forma. Quando uma coisa me afeta sorrio ainda mais para não dar parte fraca. Na altura era uma questão de sobrevivência e depois fui levando isso ao longo da vida como uma ideia de sobrevivência na minha cabeça.
A questão do bullying está no disco?
Sim, está, o Jorge Cruz escreveu Isso É Que Era Bom que é um tema sobre bullying. Ele tinha essa vontade e achou que eu era a pessoa certa para cantar essa canção, eu gostei muito porque queria muito falar sobre isso.
Como vai preparar a sua filha para essas eventuais situações?
Estando atenta, ao menos sei os sinais porque os vivi. A maior parte das crianças que sofrem não falam do assunto, não comunicam. Eu era uma criança extrovertida e depois do bullying passei a ser uma criança introvertida. Tinha medo de interagir com as pessoas. Ou seja, mudanças de comportamento, uma criança que fique mais acabrunhada e não quer ir à escola, o não ter muitos amigos ou só ter um amigo, serão sinais daquilo que eu vivi e que algo não está a correr muito bem. No meu tempo podia chegar a casa e estava no meu sítio seguro, hoje em dia com as redes sociais é mais ingrato, abre-se o computador ou liga-se o telemóvel e as coisas estão ali. Mas gostava de dizer a quem está a passar por isso que há nas redes sociais grupos de pessoas que partilham experiência e é ótimo saber que pertencermos a um sítio depois de nos dizerem que estamos errados e não pertencemos a lado nenhum.
No início da conversa disse que teve de aprender a estar a solo. É mais difícil para uma mulher do que para um homem ser intérprete sozinha?
Ainda há caminho a percorrer, mas comparando com os anos 1950, 60, 70, é mais fácil hoje ser uma mulher na música. Ser performer também, mas a partir de uma certa idade ainda não. Continuamos a ver que mulheres a partir dos 40 anos deixam de aparecer nas televisões, nos media mainstream, nos grandes concertos. Se formos ver, não há muitos exemplos de mulheres com 50 a 60 anos a aparecer, enquanto os exemplos masculinos abundam - aí a idade pesa muito. Provavelmente terá que ver com a ainda pouca aceitação do envelhecimento feminino. Já como autora acho que só agora as coisas estão a acontecer. Temos agora uma geração com a Carolina Deslandes, a Cláudia Pascoal, a Bárbara Tinoco, a Márcia, a Francisca Cortesão, uma mão-cheia de autoras. Na altura que comecei não era assim. Penso que as mulheres estão cada vez mais a assumir as suas carreiras, a sua música e o seu universo sonoro, e o público acarinha. Isto falando de Portugal. Se falarmos dos EUA as mulheres reinam. Estamos a caminhar para um sítio em que ser homem ou mulher não interessa, só mesmo o talento. Mas ainda há umas coisas por aí e um caminho para se fazer.
A Ana de hoje é muito diferente da Ana arquivista do Ministério das Finanças?
Muito diferente e ao mesmo tempo não. A essência é a mesma, mas, obviamente, já passei por tantas coisas que me moldaram e me deram traquejo. Deram-me peso, mas não me deixaram pesada e não me retiraram a espontaneidade, o brilho dos olhos. Hoje em dia encaixo melhor o mundo, as críticas más, aceito um pouco melhor o escrutínio público. Quando trabalhava no arquivo era uma Ana muito quieta, no meu mundo. Recordo-me que os meus colegas do Ministério quando viram um concerto dos Deolinda, ainda antes de sermos conhecidos, assustaram-se comigo, não reconheciam aquela pessoa que tinha a mesma cara da sua colega, mas não era a colega (risos). Mas estes mais de dez anos com o público também me moldaram. E a maternidade também. Como chegou perto dos meus 40 anos foram duas coisas quase ao mesmo tempo e que foram muito intensas, foi como se tivesse dado um clique.
Porque é que os Deolinda acabaram?
Estamos em pausa, digamos assim. Na altura, quando tive o disco a solo, os outros elementos também disseram que queriam fazer coisas diferentes. Era uma altura em que podíamos acertar agulhas para fazer o que nos desse na gana, e estarmos a sós. A pausa veio depois de 10 anos muito, muito intensos.
Mas é mesmo uma pausa?
Não sei, não digo isto por jogo, mas não é justo vaticinar por mais três pessoas. Sempre falarmos como banda, como um coletivo. Para mim os Deolinda estão em pausa até a banda decidir alguma coisa.
A última canção do álbum é Tudo de Bom. É um desejo ou uma crença?
Quem escreveu a letra foi o Nuno Prata mas desde que ele me entregou a canção passei a usar essa expressão muito. Mas é um desejo para o mundo, para os outros e para mim, claro. A última frase dessa canção Além da Curta Imaginação dá o título ao álbum e é para irmos além daquela imaginação comezinha do dia-a-dia. Planeamos muito, mas depois a vida tem outros planos e a única forma de sobreviver é criar, na cabeça e depois materializar, para ir mudando o mundo, nem que seja à nossa escala. A música faz-me isso. Se não houvesse a criação e não fosse tão importante para o ser humano acredito piamente que ainda estávamos nas cavernas e não teríamos chegado onde chegámos. Por isso, tudo de bom para as pessoas e que consigam realizar os seus sonhos.
filipe.gil@dn.pt