Conhecer os Açores com grandes escritores

Pode-se conhecer Barcelona com os romances de Carlos Ruiz Zafón na mão, Dublim com o <em>Ulisses</em> de James Joyce ou Florença com a <em>Cidade das Flores</em> de Augusto Abelaira. Por que não as ilhas dos Açores através dos escritores que as retrataram em centenas de páginas?
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O Faial e o Pico são o primeiro destino escolhido para se fazer uma experiência pouco habitual em Portugal: dar a conhecer as ilhas à boleia de livros de quem as (d)escreveu. Não só através do olho mágico de Nemésio, do relato fanfarrão de Mark Twain ou da epopeia da baleação de Dias de Melo, mas também por via de uma mão cheia de autores que ficaram impressionados com a beleza das ilhas situadas a meio do Atlântico e que se mantêm tão virgens como os locais mais inacessíveis do planeta, com paisagens ainda tão pouco alteradas pela presença humana.

A ideia destas visitas aos Açores dos Escritores é de Luís Daniel, que montou um roteiro para esta aventura tão literária como turística e que tem a sua primeira iniciativa já em fevereiro. Esperam-se grupos de duas dezenas de pessoas que aterrarão no aeroporto da Horta à sexta-feira e nesse dia e nos dois seguintes percorrem o Faial e o Pico num pequeno autocarro e atravessarão o canal que separa as duas ilhas no ferry para conhecer aquela em que o ponto mais alto de Portugal se ergue e, desde a chegada, está constantemente a aparecer no horizonte do viajante.

Antes de se ir ao Pico, é o Faial a atração literária. Percorrer a zona rural de uma ponta à outra com surpresas pelo caminho, todas elas retiradas de detalhes dos livros que servem de guia a esta visita. O primeiro será o de Raul Brandão, As Ilhas Desconhecidas, em cujas páginas são encontrados parágrafos que ilustram o que se observa e se enquadram as surpresas que irão surgir pelo caminho. Escreve Brandão sobre a cidade da Horta: "Ao fundo da baía limitada por dois morros, o Monte Queimado numa extremidade e na outra o Monte da Espalamaca". Define assim em traços largos a localidade a partir do ano de 1924, mas pouco mudou na paisagem. A cidade não será apenas "de uma só rua", mas não cresceu assim tanto; certo é manter-se em muito a "branco e cinzento, como eles dizem". Ao passear-se pela Horta confirma-se que não desapareceram "alguns conventos, algumas igrejas pesadas, velhas e simpáticas casas de província com varandas de madeira e reixas". E claro, é impossível não reparar no Pico o outro lado do canal: "O Pico formidável... a baía arredondada e o Porto Pim".

Brandão não se ficou pela parte baixa da cidade e a voz de Luís Daniel acompanha a viagem com trechos de As Ilhas Desconhecidas, até que ao ser interrompida em Espalamaca, onde o vento teima em ser tão forte como a intensidade da beleza que daí se observa. E a voz diz alto uma frase: "O que dá um grande caráter a esta terra é o capote. De quando em quando, irrompe um fantasma negro e disforme, de grande capuz pela cabeça". O viajante pergunta qual é o significado daquelas palavras sobre um traje que desconhece e, ainda só deu dois passos em redor de um moinho, quando repara numa mulher encoberta e da qual nem o rosto se reconhece. Então é isto o capote»?, pergunta, enquanto se aproxima do corpo negro que tanto espantou Brandão e continua a fazê-lo quase um século depois.

Esta é a primeira surpresa de um roteiro onde irão surgir decalcadas as visões que surpreenderam tantos viajantes ao longo dos séculos. A partir desse momento não faltarão as recriações sucessivas que irão conjugar a realidade atual das ilhas com as evocações de outros tempos. Aliás, basta esperar mais uns minutos para se lhe juntar conhecimentos que, ou não se lembram ou não se sabem, como os de o Faial ter sido povoado em metade por portugueses e flamengos. São os moinhos, parecidos na estrutura mas diferentes nas velas, conforme a nacionalidade de quem os construiu. Logo aí se ouve falar das páginas que o norte-americano Mark Twain escreveu em A Viagem dos Inocentes, surpreendido por estas edificações que eram rodadas na base conforme o lado de onde o vento soprava. Dizia ele: "Quando o vento muda, eles pegam nuns burros e dão a volta a metade do moinho até as velas ficarem na posição correta em vez de o fazerem só à parte superior do moinho onde estão a velas". Diga-se que as observações de Mark Twain são quase sempre pouco lisonjeiras para os Açores e para os portugueses, mas nem sempre se deixa de se espantar com o que vê. Nada que no resto do livro não se repita para com todos os lugares e povos aonde vai durante a viagem no ano de 1867.

Brandão não é tão enviesado como Twain e o seu olhar é mais realista. Em vez de considerar a população com um olhar preconceituoso tem outra capacidade: "Vejo passar nas estradas esta gente afadigada, as raparigas com a lata do leite, os homens que regressam do trabalho de chapéu de aba larga, jaleco e varapau... É a terra dividida, é a terra cultivada com amor pelo pequeno proprietário... aqui não há pardais, mas o estorninho faz esse papel com muita competência..." Na reedição de 2018 da obra de Raul Brandão, o prefaciador Machado Pires refere: "Por não ser ilhéu, Brandão ainda melhor contribui, na surpresa do visitante maravilhado, para enriquecer a experiência estética e documental de uma literatura de significação açoriana».

O circuito pela zona rural da ilha não dispensa também o romance Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio, afinal o canal não passa despercebido aos viajantes e as passagens do livro ajudam a compreender a história da ilha: "E, para lá do "calhau" coberto das mantas da cheia, via-se o Canal ainda amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo. O cano do Funchal fumava a meio da Doca, entre um rebocador, a draga e a canhoneira, e Margarida reparou que lhe faltava qualquer coisa: metade do mastro de vante levada pelo ciclone". Esta destruição faz lembrar outros dramas, como o do grande terramoto de 1998, em que a devastação foi grande durante dias sucessivos. Daí que se vejam várias igrejas de construção recente a substituírem as que foram desfeitas nessa data.

O nome Margarida vai regressar amiúde ao relato, no entanto primeiro chegará a vez de outra figura feminina, desta vez a da novela de Antonio Tabucchi, Mulher de Porto Pim, apresentada durante um jantar típico da gastronomia do Faial, em que se escuta as três histórias paralelas contadas em 100 páginas com a interpretação. Tabucchi recorda a pesca da baleia, relembra o poeta Antero de Quental e reinventa uma história de amor que acaba em tragédia. Esta última narrativa permite descobrir a Horta noturna, ao percorrerem-se aqueles que teriam sido os últimos passos da protagonista antes de dar um fim à dupla traição que viveu e que acaba no Porto Pim.

Chega a hora de Margarida e de Mau Tempo no Canal e o segundo dia inicia-se com a narrativa de uma das mais importantes obras da literatura nacional. Confirmaram-se já as frases escritas por Raul Brandão: "Cada ilha tem a sua nuvem" e "o melhor que existe em cada ilha é a ilha que se vê em frente". O ferry é rápido e como o mar que separa o Faial e o Pico, um estreito braço de mar de 8,3 km ou 4,5 milhas náuticas, está pacífico em menos de meia-hora a embarcação chega ao segundo dia do programa.

No Pico, a densidade populacional é de um terço, mas, irá ouvir-se e ver, pois não falta quem dance e toque. O maestro Carlos Frazão, que acompanha as canções açorianas interpretadas por Pilar Silvestre, explica a exuberante musicalidade destas ilhas e dá exemplos: que a Graciosa tem o maior número de pianos per capita em Portugal, que o Pico conta com 12 ranchos folclóricos e 15 bandas filarmónicas.

A paisagem muda drasticamente e o que nenhum livro poderá descrever como o olhar é o rendilhado dos muros que protegem as videiras que dão origem ao famoso vinho do Pico, aquele que vai gerar muita da ação do romance de Nemésio. O Pico é conhecido como a ilha negra devido às pedras que elevam esses muros e murinhos e onde desde 1960 se retomou a produção do verdelho após a devastação provocada pela filoxera em 1852. O professor Manuel Tomás Costa conhece bem Mau Tempo no Canal e, perto da casa onde nasceu o primeiro presidente da República, Manuel Arriaga, mostra uma espécie de porto onde as pipas de vinho eram atiradas ao mar e logo "pescadas" pelos barcos que as levavam para a Horta. O local chama-se Guindaste e mais não é do que uma abertura natural entre os rochedos negros que permitia rolar os tonéis até ao mar. É ali que se passa uma das cenas mais marcantes do romance e, ao enquadrar em muito a ambiência dos elementos, a identidade de Margarida fixa-se definitivamente no leitor, conforme se entende do que é lido. O "guia" acrescenta: "Há quem diga que a Margarida é o próprio Nemésio!"

Quem olhar para trás não consegue fugir ao volume da montanha afiada a entrar pelo céu adentro, visão quase sempre possível seja qual for o caminho que se faça na ilha. Paisagem que atrai os visitantes e leva estrangeiros a fixarem-se também na ilha. Uma delas é a escritora Romana Petri que, no Pico, captou as falas e o ambiente para o seu romance premiado A Senhora dos Açores. É a "história de uma terra longínqua, onde um mundo de mitos e de fantasmas, de pobreza e solidão, servem de pano de fundo à grande migração em direção ao continente e à civilização industrializada. Na ilha rodeada de oceano, resta a certeza dos sentimentos antigos, a substância das recordações, o silêncio e a companhia da natureza. Ao entrar em contacto com comunidade que a rodeia, a protagonista esquece-se de si mesma, como se entrasse numa dimensão intemporal". É esse sentimento captado por Romana Petri que se confirma ao escutarem-se as gravações que fez das pessoas com quem conversou e que vivem nas redondezas da sua casa e com as quais o viajante se confronta, pois o autocarro pára no meio de uma aldeia e uma concentração de pessoas aparece para mostrar o folclore local até que, após o fim das danças e cantares, o local volta a encher-se de vazio humano. Só o mar marca presença.

É impossível não sentir esta presença oceânica constante, que alguns dos escritores açorianos tão bem descreveram nos seus livros. É o caso do ficcionista Dias de Melo, que regista para sempre a epopeia baleeira e do poeta Almeida Firmino que escreve sobre o Pico "ancoradouro de aves, poetas e baleeiros". Além de tudo o que já se viu neste passeio Açores dos Escritores, a reconstituição da caça à baleia é um dos pontos altos. Uma embarcação que reproduz os tempos áureos desta atividade é lançada ao mar e pode-se perceber como tudo acontecia até ao ano de 1987, quando foi capturado o último cachalote. Uma recriação que chama ao porto habitantes que há muito tempo não veem tripulações naqueles barcos esguios de duas velas fazerem-se ao mar, sempre em contacto com os postos de observação que nos pontos altos da ilha assinalavam a passagem dos cetáceos.

É no Museu Baleeiro que existe na Vila das Lajes que o investigador Manuel Francisco Costa conta esta história aos viajantes, explica porque se chama caça e não pesca à baleia e evoca Dias de Melo, o principal autor desta narrativa em vários livros que publicou e nos quais descreve a vida do baleeiro picaroto - assim se chamam os habitantes da ilha - em relatos muitas vezes comparados à dos de autores como Steinbeck e Caldwell. O "negrume" destas vidas, fruto da grande exploração dos caçadores, foi uma das grandes preocupações nas suas narrativas, além de toda a descrição que permite conhecer profundamente as vidas destes homens.

O terceiro e último dia deste Açores dos Escritores é passado novamente no Faial e desta vez o autor escolhido é Joel Neto, que publicou em 2018 um dos melhores romances sobre os Açores, Meridiano 28, designadamente sobre as duas ilhas deste passeio. Será boa ideia lê-lo antes desta visita, pois aglutina toda a História do arquipélago e torna-se o melhor passaporte para a sua compreensão. Muitos dos cenários do romance estão entre os lugares visitados, como é o caso do edifício da mais que centenária Sociedade Amor da Pátria, as instalações dos cabos submarinos que ligavam telegraficamente todo o mundo de então e onde viviam os profissionais de vários países encarregados dessa atividade, bem como o local onde amaravam os hidroaviões, como se pode ler nesta passagem: "Foi nessa tarde que viram Clark Gable. Percebendo que umas quantas mulheres começavam a reunir-se à borda do embarcadouro, decidiram ir assistir à chegada do Clipper, como não faziam há muito tempo. Quando os passageiros começaram a descer, um a um, Mrs. Byrnes pôs-se aos guinchos, acenando com o seu livro de autógrafos: Mr. Gable! Here, Mr. Gable!"

É no majestoso salão da sociedade que a professora Catarina Azevedo abre o romance e o situa os factos nas décadas do século passado, quando a Segunda Guerra Mundial estala e a vida benévola dos moradores é radicalmente alterada pelo conflito. As várias nacionalidades presentes na Horta desentendem-se como aconteceu no resto do mundo. Pelo salão passam Saint-Exupéry, Glenn Miller e muitas personagens que usaram o Faial como paragem entre etapas das suas vidas. Como se pode ver nas paredes do Peter Café Sport, onde nenhum visitante deixa de beber o seu famoso gin. Detalhes de uma literatura que o conhecedor daquela época Victor Rui Dores explana no elegante Café Internacional, por onde tantos espiões passaram e mudaram a realidade do Faial, muitos anos antes da mais drástica, a erupção do vulcão dos Capelinhos, que dá a resposta final à intriga do romance de Joel Neto e onde o que se visualiza na paisagem e no seu centro de interpretação fica para sempre na memória do viajante.

As primeiras viagens organizadas pela agência MB Travel decorrem nas seguintes datas:

11 a 13 de março

18 a 30 novembro

8 a 11 dezembro

Informações www.mbtravel.Pt ou azores@mb-travel.pt

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